Capítulo 26

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Madrugada avançada. Centro de treinamento.


A chuva continua caindo forte. Sem uma capa de chuva ou qualquer tipo de proteção, tanto eu quanto Kali chegamos à frente de seu centro de treinamento completamente encharcados. Ficamos em silêncio pelo caminho inteiro, sem que ela falasse qualquer coisa – e eu incapaz de quebrar seu silêncio por medo da resposta que posso ter. Então, simplesmente passamos pela Zona Industrial e andamos pelo subúrbio apenas com a eletricidade de nosso toque.

Paro em frente ao lugar. Kali imediatamente salta, suas botas batendo no chão e espalhando água. Ela, finalmente, tira a máscara de gás do rosto e a joga na sarjeta, passando o braço no console ao lado da porta e entrando em seguida, sem hesitar.

A porta de entrada do centro de treinamento fica aberta.

É um convite.

Eu me demoro mais um pouco do lado de fora. Toco na tela da moto e desligo o motor. O farol branco também se desliga, deixando a rua um pouco mais sombria e escura. Eu apoio o veículo com o pé de metal acoplado e me afasto.

Ando a passos lentos na direção da porta e a abro. Entro e ela se fecha atrás de mim. O som da chuva continua presente, abafado, embora ainda alto.

O interior está completamente imerso em escuridão. Dou alguns passos para o vazio em frente, abraçado em meus próprios braços e sentindo o frio gelando meus ossos aos poucos, tomando o lugar da adrenalina. Cada centímetro de meu ser parece estar molhado, e a água pinga das minhas roupas intermitentemente.

Então uma luz se acende.

Uma só.

Um foco de luz amarelada exatamente no centro do tatame no qual Kali costuma treinar. O tatame, vazio.

Então ela aparece, surgida do escuro.

Eu me aproximo aos poucos. A garota trocou de roupas enquanto eu estava do lado de fora e agora está mais seca do que antes. Usa uma calça preta folgada, assim como uma blusa de gola ampla. Mas há algo de errado nela, algo de errado na maneira como se põe em pé, como fica parada lá, como me olha. Apesar de ser o mesmo olhar – o olhar capaz de me ver no escuro do centro de treinamento e encontrar meus olhos no meio da noite –, há algo diferente nele.

Algo de errado.

Ela se senta no tatame e eu faço o mesmo, cada um de nós em um lado, junto da borda delimitada pelo círculo de luz.

Todo o cabelo do lado esquerdo da cabeça dela foi raspado. Totalmente raspado. O restante foi puxado para o outro lado, fazendo um arco sobre sua testa e caindo como uma cascata de água negra, úmido pela chuva, criando uma sombra em um dos lados de seu rosto. O outro é completamente iluminado. Duas metades opostas.

A princípio, nenhum de nós sente vontade de falar. Nos contentamos em nos olhar, em nos analisar. Em observar cada detalhe do rosto um do outro. E nós o fazemos sem pudor, sem vergonha. Enxergamos um no outro tudo que queremos ver. Pelo menos por uma vez, somos, os dois, transparentes. Como se fosse possível enxergar através dela e, ela, através de mim. Como se ela não estivesse no círculo de luz, mas desaparecesse por conta da escuridão atrás de si. Como se fizesse parte da escuridão.

— O que aconteceu com você? — Ela pergunta. Seus lábios quase não se mexem.

Levanto a mão e toco em meu rosto, raspado por conta da queda no estacionamento. Um momento de pura estupidez, de pura selvageria.

— Eu... caí com a moto.

Apesar de sempre ter estado lá, a partir do momento em que começo a pensar nele, o ferimento começa a doer.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora