Quinze minutos depois. A caminho do centro.
São quinze os principais viadutos que passam sobre a Zona Industrial e fazem a conexão entre o centro e o subúrbio. E são, também, quinze postos avançados de mantenedores para fazer o controle da passagem de pessoas de um lado a outro.
Uma chuva pesada não dá trégua, ensopando minha roupa por completo.
O motor movido a núcleo atômico chia quando desacelero para parar junto da cabine do posto avançado. O toldo de vidro acima me protege temporariamente da água.
— O braço.
O homem na cabine nem me olha. Estendo o braço esquerdo e puxo a manga.
Ele passa um escâner pelo meu display e, então, para.
— O que é isso?
Sinto um arrepio na espinha e um forte frio na barriga.
— Um dispositivo de rastreamento e alarme. — Eu digo, lembrando do que Ceres disse. O homem olha para o adesivo verde colado na minha pele.
— Venha comigo.
Desço da moto sem desligar o motor. Se precisar fugir, é melhor que seja rápido.
O homem anda pelo lado de dentro e, eu, por fora da cabine, o acompanhando. Ele indica uma porta deslizante e aguarda até que eu chegue nela. A porta se abre com ruído de pneumática, e uma mulher está sentada atrás de uma escrivaninha com tampo de vidro. Sua expressão não parece muito amigável, ainda que ela também não olhe para mim.
— Qual é o problema? — Pergunta ela ao mantenedor.
— Dispositivo pirata implantado — ele diz, e parece bem pior nas palavras dele. — Preciso de uma verificação detalhada de seu funcionamento e interferência ou não no display.
A mulher concorda com a cabeça e aponta para uma cadeira. É uma cadeira simples, com pouquíssimo estofamento e uma parafernália acoplada ao encosto. No apoio de braço esquerdo há um cilindro comprido no qual devo colocar meu braço. Serve para ver a estrutura interna do display e, muito provavelmente, para analisar a tal campainha.
Praguejo em silêncio contra a hacker.
Eu me sento e coloco o braço no cilindro. Aguardo por algum tempo até que a mulher termine o que estava fazendo – aparentemente estava ocupada com algum tipo de rede de compartilhamento. Quando ela acaba, levanta e vem até mim.
— O que é isso?
A programadora provavelmente já topou com algo exatamente igual a isso, mas deve precisar da confirmação verbal para continuar com o exame.
— Um dispositivo de rastreamento e alarme — digo de novo, em voz baixa. — É uma campainha.
— Você sabe que implantar qualquer tipo de dispositivo que modifique funções do display é considerado crime e pode levá-lo à CMT, certo? — A mulher permanece com a expressão pouco amigável. — Qual é a função deste dispositivo?
Ela continua olhando para a máquina, e usa pequenos instrumentos de metal para tocar no adesivo. O contato é estranho, inesperado.
— Não é nada de mais — digo, e me odeio por minha voz tremer um pouco. — Ele lança um aviso para um computador distante e informa minha localização. É como um botão de pânico.
A mulher olha para mim pela primeira vez e me analisa por alguns instantes. E, finalmente, fala:
— Está liberado.
Solto todo o ar dos meus pulmões o mais discretamente que posso.
— Volte ao meu colega para fazer o restante da verificação.
Concordo e tiro o braço do cilindro, levanto da cadeira e saio rápido. Volto para a moto, parada no mesmo lugar, o motor ainda roncando muito baixo. Sento sobre ela e estendo novamente o braço ao homem. Ele não para de olhar para o adesivo verde, mas não pergunta qual é a análise da programadora. Provavelmente já está no sistema.
— O que vai fazer no centro? — Pergunta ele.
— Tenho um alvo. — Resisto à vontade de acelerar a moto e fugir.
— Qual é o nome?
— Kali Assange.
O homem digita qualquer coisa em seu teclado projetado sobre a mesa e olha para os dados na tela.
— Creio que não será possível roubá-la. Ela está na CMT.
— Eu... sei disso. — Digo, hesitando.
— E, mesmo assim, ela continua sendo seu alvo de hoje?
— Sim.
O mantenedor concorda e solta meu braço. Ele não diz mais nada.
A cancela que me parou, antes, agora é levantada. Pressiono o gatilho do acelerador e o vapor sai do escapamento com um som abafado. O pneu guincha quando parto. Logo estou atravessando a ponte sobre a Zona Industrial em alta velocidade, as luzes a certa distância umas das outras iluminando ora sim, ora não o meu caminho. Luz, escuridão, luz, escuridão, escuridão.
Chego ao centro da cidade sem reduzir de velocidade, e um dos carros forçados a parar pela minha presença buzina. Eu o ignoro, seguindo pelo caminho pré-traçado em minha mente para chegar à avenida principal. É só olhar para meu display e seguir o círculo vermelho que representa meu alvo.
Por muito pouco não bato em um carro parado em um semáforo e quase trombo com outra motocicleta em uma encruzilhada. Mas continuo acelerando até chegar à avenida.
E, quando chego lá, pressiono o gatilho até o fim.
A moto atravessa a avenida de ponta a ponta. Enveredo entre os outros veículos como se nem estivessem lá.
Finalmente, a CMT, no fim do caminho. O quartel-general dos mantenedores empoleirado na montanha da cidade, e as entradas oficiais com as cabines de verificação e as rampas que levam para o estacionamento subterrâneo. Kali está em algum lugar aí dentro. Olho para a tela em meu braço só para confirmar: o círculo vermelho continua exatamente no mesmo lugar em que estava, antes.
Mantenho a moto ligada, mas paro na descida para o subterrâneo. Longe o bastante para não chamar a atenção. Perto o bastante para ver os desdobramentos do que quer que vá acontecer quando eu apertar a campainha.
Olho para o adesivo colado no meu braço. Aperto-o e sinto uma leve corrente elétrica me transpassar inteiro. No display, a seta branca que me representa agora lança ondas circulares azuis para o entorno.
Puxo o adesivo pelo canto e ele arranca alguns pelos por conta da cola, então o solto no chão. Agora é inútil.
Olho para a entrada e para os guardas junto dela.
Por um minuto, nada acontece. Apenas a chuva continua caindo forte contra minhas costas.
Então, as entradas se iluminam de vermelho e uma sirene muito alta começa a tocar.
É a hora.
Acelero a moto na direçãoda entrada.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...