Capítulo 79

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O corpo de Leon pende para a frente e desaba, preso pelas algemas.

O display de Kali se ilumina.

Ela olha com pesar para o velho morto, e põe a mão sobre a dele.

O'Neil se aproxima rapidamente e passa um pequeno dispositivo sobre as algemas dele. Leon cai no chão, esparramando uma poça de sangue quase que instantaneamente.

Kali olha para a pistola em sua mão.

— Tudo que você queria, desde o começo, era o pareamento — diz Dimitri, atrás dela. — Você queria se parear, e conseguiu. Agora, nada mais faz diferença. O amor que você imaginava sentir é irrelevante.

Os olhos dela vão para a faca sobre a bancada.

Ela olha para as duas armas.

Então, levanta a pistola na direção do mantenedor.

— E se eu matar você? — Pergunta. Agarra a faca com a outra mão e aponta a lâmina vermelha para Markham. — E se eu matar vocês dois? Sei que estão no meu display. Eu sei que tenho que matar vocês.

— Você se renderia à Teia de vez — diz O'Neil, sorrindo outra vez. O orador das cerimônias, entretanto, fica calado. A mão dele sobe para o colarinho e para o mínimo broche dourado de hexágono. — Estaria cumprindo com o seu destino, ainda que antecipadamente.

— Todos somos peças de uma mesma máquina — diz Silas, quase sem mover a boca. — Ninguém é insubstituível.

— Uma atualização está programada — continua o mantenedor. — De nada adiantaria nos matar tentando encontrar um escape. Seríamos substituídos, e nada mudaria. O fluxo seguiria intacto.

Com a mão direita ainda segurando a faca, ela engatilha a pistola.

E, com a esquerda, aperta o cano contra a têmpora, no lado da cabeça em que o cabelo foi raspado.

— E se eu me matar?

Os olhos de O'Neil se arregalam.

O mestre da manutenção levanta a mão para ele outra vez.

— Nada mudaria. — Diz. — Ninguém é maior do que a Teia. Ninguém é imune. Você também seria substituída, mas seu ato de covardia, sua escolha pela fuga pela tangente de nada serviria, exceto por ignorar completamente toda a sua... luta. — Ele não esconde o desprezo.

— Você não pode fugir à sua responsabilidade — diz Dimitri. — É seu dever fechar esse arco.

Ele dá dois passos à frente.

— É seu dever matá-lo.

Outra vez ela olha para mim.

É impossível decifrar o olhar dela.

Em suas mãos há duas armas. Na esquerda, a pistola. Na direita, a faca.

Ela abaixa os olhos e mira cada uma delas.

— Eu nunca tive escolha, Harlan — ela murmura, os lábios se colando um ao outro, como se ela não quisesse falar o que diz. — Toda a nossa luta nos trouxe até aqui. Eu lutei por você.

— Eu também lutei. — Respondo. Minha voz quase não sai.

Kali nada diz.

Seus olhos parecem mais fundos do que jamais foram.

Eu me perco dentro deles.

Mergulho em sua espiral de escuridão, e o fundo nunca chega.

Mas há fogo... há fogo por todo o caminho.

— Eu preciso fazer o que é certo. — Ela diz, ainda mais baixo.

Nossos olhos se encaixam, como se não pertencessem a qualquer outro lugar que um no outro.

As lágrimas que corriam pelo seu rosto secaram. E ela não chora. Não mais.

Não por mim.

Sob o olhar do mantenedor e do político, os olhos dela falam muito mais do que qualquer coisa que possa dizer.

Eu respiro fundo. Todo o meu corpo está estático.

Imóvel.

Ela larga a pistola sobre a bancada, e segura a faca com firmeza.

Em minha mente, voltam as lembranças do dia em que nos pareamos.

Lembro do que ela disse.

Lembro do olhar que ela carregou consigo o tempo inteiro.

Havia algo por detrás dele. Algo puro, intocado. Algo diferente do que ela havia dito.

Algo que ela queria dizer, mas não podia. Assim como agora.

Quando finalmente alcanço o fundo de seus olhos, eu encontro as palavras.

Encontro as palavras que ela queria dizer, e elas são exatamente as mesmas que foram ditas.

Mas, dessa vez, são verdadeiras.

Seu significado é puro. Seu significado é a única coisa que existe.

Eu, ela, e as palavras.

A faca é um empecilho.

A faca é uma consequência.

Ela não chora.

Nós nos encaramos longamente.

Eu vejo por debaixo da superfície:

Confie em mim.

E não há mais nada que eu possa fazer.

— Eu confio em você. — Murmuro.

A mão dela alcança minha nuca.

A faca alcança meu corpo.

A lâmina penetra até o fundo.

Minhas pernas já não mais me suportam.

Caio de joelhos, os pulsos presos pelas algemas eletromagnéticas.

Dor.

Abro a boca e grito.

Todo o meu corpo grita comigo, grita com toda a força.

Grita pela morte.

Fecho os olhos. Tudo em mim parece inconstante, fluido.

Olho para o cabo negro da faca para fora de meu corpo. O restante está dentro.

O sangue escorre pela minha barriga, pela minha perna. E logo haverá uma poça, misturando-se ao sangue de Leon. E, logo, não haverá mais distinção entre o que ele foi e o que eu fui.

O que eu sou.

E o que não serei mais.

Há apenas negrume em frente a meus olhos quando me contorço.

Espero pela facada final, pelo momento derradeiro.

Mas ele não vem.

— Deixe-o agonizar — diz a assassina. — Deixe que morra.

Eu não vejo seu rosto.

As algemas se desprendem da bancada, e eu caio de lado no chão.

Antes que tudo simplesmente desapareça, vejo-a saindo da sala.

E, quando ela o faz, seu display não brilha.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora