Capítulo 63

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Meio da manhã. Fora do meu dormitório.


Demorei mais do que o habitual para sair do dormitório na manhã seguinte. Ainda que eu tenha tentado reduzir a minha sensação de confusão dormindo, ela não desapareceu.

Com os pensamentos entrelaçados, faço o check-out.

Assim que piso do lado de fora, meu display se ilumina.

Aviso de proximidade.

Kali está do outro lado da rua, com as costas apoiadas na parede e a cabeça baixa, os cabelos tapando seu rosto.

Ela está vestida de preto.

Seu display se ilumina ao mesmo tempo que o meu, e ela levanta os olhos. Seus olhos escuros, impenetráveis. Mas o olhar que ela me lança, dessa vez, é vazio. É opaco, ainda que lacrimeje, ainda que esteja prestes a desaguar em lágrimas.

— Kali. — Eu digo, e não sei se o meu tom é amistoso, amedrontado ou ameaçador.

— Harlan. — Ela cumprimenta, e sua voz não é um décimo do que costuma ser. Não há certeza, não há dureza. Sua voz treme tanto quanto suas mãos.

— Eu procurei por você — digo, me aproximando. — No centro de treinamento, no banco de dados, no refeitório. Tentei usar o dispositivo de georreferenciamento que consegui com Ceres, mas ele parece ter sido desativado. Eu não consegui encontrá-la.

— Eu estou desativando os hacks do meu display. — Murmura ela, quase sem mexer os lábios. A cor deles é a mesma do restante de seu rosto. Ela está pálida.

— Onde você esteve?

— Na Zona Industrial. No Núcleo de Nascimentos. — Sua voz parece minguar.

Parece haver uma aura elétrica em volta dela, então me apoio na parede a seu lado, mas à distância de um passo. Olho para seu rosto, que volta-se para baixo. Uma lágrima solitária escapa de sua pálpebra e corre pela extensão de seu nariz, contornando sua curva e molhando os lábios dela.

— O que aconteceu?

— Leon.

Por alguns instantes eu fico em silêncio, sem saber o que dizer. As mãos dela não parecem conseguir se segurar em nada. Então pendem dos lados de suas pernas.

— Você... o matou?

— Não — diz ela. — Não. Eu não seria capaz de fazer isso. Jamais.

Ela vira o rosto para mim.

— Eles o levaram para a CMT — continua, a voz baixa. — Eles o levaram. Eu fui até o banco de dados e procurei por ele. Mas ele não apareceu. Eu esperei, esperei por muito tempo. Mas ele não conseguiria aparecer, nem se quisesse — outra lágrima corre, gravando seu caminho pela bochecha dela. — Agora é só uma questão de tempo antes que eu seja chamada à CMT.

— E seja obrigada a matá-lo.

— A fechar seu arco.

Eu respiro fundo, sem saber o que dizer.

— Quanto tempo você tem, antes de levarem você até lá? — Pergunto.

— Eu não sei. Pouco.

Por alguma razão, sinto meus olhos lacrimejarem, também. Quem sabe seja apenas um reflexo das lágrimas dela.

Estendo minha mão e seguro a dela. Seus dedos estão soltos e, quando tento prendê-los em minha mão, eles parecem mortos. Mas eu os aperto firme e olho para ela.

— Nós não podemos esperar. — Ela diz.

Ela abre a jaqueta. As suas armas estão lá. A pistola e a submetralhadora.

Olho para elas, e para as nossas mãos unidas. O gesto agora parece superficial e irrelevante.

— O que vamos fazer? — Pergunto.

— Vamos ao Núcleo de Nascimentos — ela responde. — Se há alguma maneira de salvar o Leon, é com uma atualização. Nós precisamos tentar, e precisamos tentar agora.

Eu a encaro. Apesar de seus olhos continuarem opacos, ela parece decidida.

Solto sua mão.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora