Luz.
Mas não a luz do Sol.
Uma luz branca, fria e dura, que me fere os olhos e faz tentar tapá-los com o braço que me resta.
Uma algema prende meu pulso.
Como que de repente eu estou completamente são e consciente. Minha mente não gira; permanece fixa e estável. Meus pensamentos fluem com naturalidade. Sinto a completude de meu corpo, e a sensação do braço fantasma desapareceu totalmente. Meu ser inteiro assimilou a inexistência do braço esquerdo e, agora, excluiu-o da minha noção de mim mesmo.
Eu pisco os olhos, tentando clarear a visão.
Estou preso a uma cadeira de rodas.
Alguém a empurra, atrás de mim.
Além de meu braço, minhas pernas também estão presas na cadeira. Mas talvez as algemas eletromagnéticas não fossem necessárias. Eu não consigo mexer as extremidades de meu corpo. É como se minhas pernas estivessem conectadas, mas não enviassem ou recebessem qualquer tipo de estímulo para ou do restante do corpo.
Tento olhar para a pessoa que empurra a cadeira.
— Onde estou? — Pergunto.
A minha voz sai rouca e baixa, como se eu não falasse há muito tempo.
Viro meu pescoço e minha cabeça o máximo que posso, mas não consigo enxergar o rosto da pessoa.
— Onde estou? — Repito.
Mas a resposta não vem. Desisto de tentar, por conta do esforço necessário para falar. Minha boca está seca.
Então meramente olho à frente, para o corredor que se estende de forma aparentemente infinita. Não demora muito para que eu reconheça o lugar, e um arrepio perpasse meu corpo inteiro. Sinto frio na barriga.
Outro corredor, um elevador, outro.
E, então, a ampla porta de folhas duplas de metal.
O quarto 101.
As portas são abertas e, do outro lado, a sala lateralmente ampla, com a gigantesca janela de vidro que toma a parede inteira. A bancada sobre a qual meus pulsos e os de Leon foram presos não está mais à vista, em lugar algum. Do lado de fora da janela desvela-se a vista da cidade inteira: o centro, a Zona Industrial, o subúrbio, os muros. E, acima de tudo isso, a cadeia de montanhas.
Junto da janela está Kali.
Ela também está sentada em uma cadeira de rodas, e seus braços e pernas estão tão irremediavelmente presos quanto os meus. Seus olhos fitam o horizonte distante que recorta o céu.
A cadeira em que estou é empurrada até ela, e então para.
A pessoa que me trouxe até aqui se afasta e eu percebo que sai do recinto.
Restamos apenas eu e Kali.
— Quanto tempo faz? — Eu pergunto, a voz arranhando na garganta.
O olhar dela é distante, perdido em algum lugar que sou incapaz de ver. Sua respiração é profunda e muito lenta. Quando fala, não olha para mim.
— Duas semanas.
Concordo com a cabeça.
Fico em silêncio.
Não parece haver nada apropriado a ser dito quando tudo o que construímos veio abaixo. Estamos outra vez encarcerados.
— Eu sinto muito. — Murmuro.
— Pelo quê?
— Por ser fraco — eu digo. — Por não seguir com o que já havia sido planejado. Tudo o que você fez foi em vão, porque eu não soube seguir o plano. Eu ignorei o seu esforço. Nós fracassamos.
— Sim. Este é o fim.
Por alguma razão, agora a frase parece mais definitiva do que antes.
Meneio a cabeça.
— Porque você subiu aquelas escadas? — Pergunto. — Você disse que estaria comigo até o final, mas eu imaginei que o final estivesse do lado de fora dos muros. Achei que você fugiria comigo. Eu não sobreviveria sozinho do lado de fora.
— Talvez não. Mas estaria livre. Morreria livre.
Eu apenas a observo.
— Você não conseguiria subir aquelas escadas sozinho — ela diz, em voz baixa, ainda sem olhar para mim. As montanhas parecem refletir-se vividamente em seus olhos. Agora eles são apenas espelhos, capazes apenas de refletir, mas não de produzir luz. — E não conseguiria passar pelo posto de controle na base do muro sem a minha ajuda. Precisaria de um álibi. A subida de uma pessoa jamais passaria despercebida. Eu subi porque pretendia ser capturada em seu lugar. Como você não tinha mais display, poderia fugir e eu seria capturada como se você jamais tivesse tentado sair.
— Me desculpe.
— Não se desculpe. O maior prejudicado é você — ela olha para mim, e tudo que vejo em seus olhos é a mim mesmo. — Sempre foi.
Ela respira fundo.
— Este é o fim. É a última vez em que poderemos conversar, e a última vez em que estaremos juntos.
Sua voz parece um decreto.
Mas surgem lágrimas em seus olhos, outra vez.
— Kali, eu...
— Sou eu quem deve pedir desculpas, Harlan — ela diz, sua voz tremendo de leve. — Preciso pedir desculpas por envolvê-lo nisso desde o começo. Eu nunca deveria ter tentado sobrepor a Teia. Deveria ter sabido desde o começo que fracassaria. Que tudo resultaria em punições severas não apenas a mim, mas, também, a você. Que você sofreria mais do que eu, porque nunca mereceu o que se passou.
Os olhos dela descem para meu braço decepado e, depois, para o que ainda possuo.
Ela soluça.
— Eu sinto muito, Harlan.
Eu abaixo os olhos para meu braço, também.
— Eu sinto muito. — Ela repete.
Na pequena e justa folga da algema eletromagnética, eu giro meu braço direito lentamente.
Meus olhos lacrimejam.
Na parte de dentro do antebraço, um novo display se ilumina.
Todo o meu corpo treme.
Eu crispo minha mão com força.
E choro.
— Porque...
Minha voz engasga no fundo de minha garganta, incapaz de sair.
— Porque sim — ela responde, em voz baixa. — Eles não poderiam permitir que vencêssemos de qualquer maneira que fosse. Você não ter um display seria inaceitável. A imunidade é inaceitável. A solução foi acorrentá-lo outra vez, mas com um elo muito mais forte, agora.
Eu fecho os olhos com força.
As lágrimas escapam por entre as pálpebras, e correm pelo meu rosto e queixo, descem pelo meu pescoço.
— O implante cerebral. — Digo.
Kali apenas me olha. Não hánecessidade de resposta.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...