Final da manhã. Banco de dados.
Kali para no primeiro degrau da escadaria do banco de dados.
— Harlan, eu preciso saber se você está realmente disposto a fazer o que estamos fazendo. — Ela diz.
Fico parado abaixo dela, para então subir no primeiro degrau, também.
Ela me olha, seus olhos encarando os meus, passando por eles e chegando ao fundo de minha cabeça. Como se eu fosse completamente transparente.
— Se você quiser desistir, esse é o momento de falar.
Balanço a cabeça negativamente.
— Se há alguém que devia estar fazendo essa pergunta, sou eu, a você. Você não tem nada a perder.
Engulo em seco.
— Nada a perder, me matando.
— Perderia tudo que fui até hoje. — Diz.
Ela abre um pouco a gola de seu casaco. Em volta de seu pescoço, o colar que ela roubou de mim.
Volta a fechá-lo.
— Você tem de estar plenamente ciente do que nos espera — diz ela, séria. — A partir do momento em que entrarmos nesse banco de dados, nada mais será igual.
— Já não é. — Respondo.
Kali me olha por mais algum tempo, para se certificar de que não estou mentindo.
Não estou.
Ela faz um breve sinal com a cabeça, de compreensão, e continua a subida das escadarias.
Passamos nossos braços pelo console na porta de entrada e encontramos Leon no lado de dentro, sentado em uma cadeira junto de uma mesa de tampo de vidro. Suas mãos passam por ela, abrindo e fechando janelas diversas. Quando nos aproximamos, percebo que ele está estudando anatomia. Nas imagens abertas à sua frente há cortes transversais de corpos, esmiuçados até o limite em infográficos que explicam a localização e funcionamento dos órgãos internos. O rosto dele parece muito mais sério do que jamais o vi.
Ele subitamente percebe a presença de Kali.
— Kali, eu encontrei algo que vai solucionar o seu problema — ele diz, passando a mão pela tela e mostrando o corpo a partir da perspectiva externa, sem mostrar o interior. — Veja bem, se você se empenhar, tenho certeza de que vai conseguir fazer isso sem—
Leon me vê.
— O que... o que esse garoto está fazendo aqui? — Pergunta, e sua voz parece ligeiramente desesperada. — Achei que isso era algo apenas entre nós dois. Você sabe o que—
— Sim, Leon, eu sei — diz ela. — Mas as coisas mudaram.
Ele abre e fecha a boca, parecendo não saber o que dizer.
— O que mudou?
— Eu acho que nós encontramos uma maneira de conseguir uma atualização. — Diz ela.
— Espero que não seja matando outro programador em um galpão de atualização — Ele estreita os olhos em nossa direção. As rugas em torno deles são profundas, muito marcadas. — Porque, se for, tenho certeza de que vocês não vão se safar, dessa vez.
Ainda que eu não tenha estado presente na ocasião, Kali deve ter contado ao velho o que aconteceu quando matamos acidentalmente o programador. Afinal de contas, eles são aliados.
— Descobrimos que existem imunes. — Eu digo.
Leon olha para mim e, então, para a garota. Depois, solta uma risada não muito alta, mas o bastante para que as outras pessoas usando a mesma mesa se voltem para nós.
— Imunes? — Ele pergunta, falando baixo, balbuciando. — Quem falou a vocês sobre essa imbecilidade?
— Ceres. — Digo.
— Ceres é uma completa imbecil — diz ele, fazendo um gesto com a mão. — Se ela realmente soubesse de alguma coisa, sairia daquele servidor e iria para a ação, ao invés de ficar roubando pessoas através da Teia.
— E Fenrir Roth.
— O antigo namorado de Edward Blair. — Diz Kali.
De repente, Leon se enrijece.
— Edward Blair? — Pergunta. — O homem do reality show?
Nós dois concordamos com a cabeça. O velho, então, parece afundar de leve na cadeira estofada, e leva a mão esquerda ao queixo, coçando a barba com um ruído áspero. Olha para fora da janela e para a luz que entra através dela, e, depois, levanta os olhos para nós.
— O que ele disse? Esse Fenrir.
— Disse que os imunes se escondem por trás de displays funcionais, como políticos. E a única diferença, para serem chamados de imunes, é que eles têm acesso aos códigos-fonte da Teia. Ele disse que devemos procurar por eles e tentar uma atualização assim. — Diz a garota, cruzando os braços sobre os seios.
— E vocês sabem onde procurar?
Kali toca em seu display e acessa as fichas que Ceres baixou para o disco rígido.
— Dois políticos no Núcleo de Nascimentos, um no Hospital Geral e o Mestre de Manutenção da CMT — Leon examina a lista e volta a dar uma pequena risada. — Acho que vocês podem diminuir a lista para três.
A fatalista fecha as fichas e Leon se joga para trás na cadeira.
— E o que vocês pretendem fazer? Simplesmente ir atrás deles e pedir por uma atualização?
— Eles são meus alvos.
Leon apoia os dois braços na cadeira.
— Você sabe que, se nada disso der certo, vai estar fazendo exatamente o que a Teia previu para você, não sabe? — Pergunta ele. — E, então, vai precisar matar esse garoto antes de vocês conseguirem o que pretendem.
— Fenrir nos explicou tudo.
— É a falsa rebeldia — eu explico. — O que a Kali vai fazer está escondido em dados ocultos no display. Segundo ele, resta, no final, fazer algo que seja considerado rebeldia verdadeira.
Leon olha para ela e bate de leve na mesa à sua frente.
Kali parece entender o recado.
— Harlan, nós nos encontramos mais tarde — ela diz, tirando a sacola negra por sobre sua cabeça e jogando-a sem cerimônia em uma cadeira ao lado de Leon. — Eu vou pesquisar o que precisamos fazer e, à noite, vou contatá-lo para darmos continuidade ao nosso plano.
Ela se senta e eu permaneço em pé. Sinto-me deslocado e mandado embora.
— Certo.
Faço um gesto com a cabeça para o velho e me pergunto de que maneira devo me despedir da garota. Tudo que ela faz é me olhar com o mesmo olhar profundo e incandescente de sempre. Então, simplesmente me viro e começo a andar na direção da saída.
Antes de sair, no entanto, olho para trás.
Kali põe a faca de gume laser que roubei de Morfeu sobre a mesa.
Leon abre os infográficos sobre anatomia. E os dois voltam a olhar para mim.
Passo o braço no console,faço o check-out e saio.
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Deuses e Feras
Научная фантастикаEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...