Capítulo 56

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Final da manhã. Banco de dados.


Kali para no primeiro degrau da escadaria do banco de dados.

— Harlan, eu preciso saber se você está realmente disposto a fazer o que estamos fazendo. — Ela diz.

Fico parado abaixo dela, para então subir no primeiro degrau, também.

Ela me olha, seus olhos encarando os meus, passando por eles e chegando ao fundo de minha cabeça. Como se eu fosse completamente transparente.

— Se você quiser desistir, esse é o momento de falar.

Balanço a cabeça negativamente.

— Se há alguém que devia estar fazendo essa pergunta, sou eu, a você. Você não tem nada a perder.

Engulo em seco.

— Nada a perder, me matando.

— Perderia tudo que fui até hoje. — Diz.

Ela abre um pouco a gola de seu casaco. Em volta de seu pescoço, o colar que ela roubou de mim.

Volta a fechá-lo.

— Você tem de estar plenamente ciente do que nos espera — diz ela, séria. — A partir do momento em que entrarmos nesse banco de dados, nada mais será igual.

— Já não é. — Respondo.

Kali me olha por mais algum tempo, para se certificar de que não estou mentindo.

Não estou.

Ela faz um breve sinal com a cabeça, de compreensão, e continua a subida das escadarias.

Passamos nossos braços pelo console na porta de entrada e encontramos Leon no lado de dentro, sentado em uma cadeira junto de uma mesa de tampo de vidro. Suas mãos passam por ela, abrindo e fechando janelas diversas. Quando nos aproximamos, percebo que ele está estudando anatomia. Nas imagens abertas à sua frente há cortes transversais de corpos, esmiuçados até o limite em infográficos que explicam a localização e funcionamento dos órgãos internos. O rosto dele parece muito mais sério do que jamais o vi.

Ele subitamente percebe a presença de Kali.

— Kali, eu encontrei algo que vai solucionar o seu problema — ele diz, passando a mão pela tela e mostrando o corpo a partir da perspectiva externa, sem mostrar o interior. — Veja bem, se você se empenhar, tenho certeza de que vai conseguir fazer isso sem—

Leon me vê.

— O que... o que esse garoto está fazendo aqui? — Pergunta, e sua voz parece ligeiramente desesperada. — Achei que isso era algo apenas entre nós dois. Você sabe o que—

— Sim, Leon, eu sei — diz ela. — Mas as coisas mudaram.

Ele abre e fecha a boca, parecendo não saber o que dizer.

— O que mudou?

— Eu acho que nós encontramos uma maneira de conseguir uma atualização. — Diz ela.

— Espero que não seja matando outro programador em um galpão de atualização — Ele estreita os olhos em nossa direção. As rugas em torno deles são profundas, muito marcadas. — Porque, se for, tenho certeza de que vocês não vão se safar, dessa vez.

Ainda que eu não tenha estado presente na ocasião, Kali deve ter contado ao velho o que aconteceu quando matamos acidentalmente o programador. Afinal de contas, eles são aliados.

— Descobrimos que existem imunes. — Eu digo.

Leon olha para mim e, então, para a garota. Depois, solta uma risada não muito alta, mas o bastante para que as outras pessoas usando a mesma mesa se voltem para nós.

— Imunes? — Ele pergunta, falando baixo, balbuciando. — Quem falou a vocês sobre essa imbecilidade?

— Ceres. — Digo.

— Ceres é uma completa imbecil — diz ele, fazendo um gesto com a mão. — Se ela realmente soubesse de alguma coisa, sairia daquele servidor e iria para a ação, ao invés de ficar roubando pessoas através da Teia.

— E Fenrir Roth.

— O antigo namorado de Edward Blair. — Diz Kali.

De repente, Leon se enrijece.

— Edward Blair? — Pergunta. — O homem do reality show?

Nós dois concordamos com a cabeça. O velho, então, parece afundar de leve na cadeira estofada, e leva a mão esquerda ao queixo, coçando a barba com um ruído áspero. Olha para fora da janela e para a luz que entra através dela, e, depois, levanta os olhos para nós.

— O que ele disse? Esse Fenrir.

— Disse que os imunes se escondem por trás de displays funcionais, como políticos. E a única diferença, para serem chamados de imunes, é que eles têm acesso aos códigos-fonte da Teia. Ele disse que devemos procurar por eles e tentar uma atualização assim. — Diz a garota, cruzando os braços sobre os seios.

— E vocês sabem onde procurar?

Kali toca em seu display e acessa as fichas que Ceres baixou para o disco rígido.

— Dois políticos no Núcleo de Nascimentos, um no Hospital Geral e o Mestre de Manutenção da CMT — Leon examina a lista e volta a dar uma pequena risada. — Acho que vocês podem diminuir a lista para três.

A fatalista fecha as fichas e Leon se joga para trás na cadeira.

— E o que vocês pretendem fazer? Simplesmente ir atrás deles e pedir por uma atualização?

— Eles são meus alvos.

Leon apoia os dois braços na cadeira.

— Você sabe que, se nada disso der certo, vai estar fazendo exatamente o que a Teia previu para você, não sabe? — Pergunta ele. — E, então, vai precisar matar esse garoto antes de vocês conseguirem o que pretendem.

— Fenrir nos explicou tudo.

— É a falsa rebeldia — eu explico. — O que a Kali vai fazer está escondido em dados ocultos no display. Segundo ele, resta, no final, fazer algo que seja considerado rebeldia verdadeira.

Leon olha para ela e bate de leve na mesa à sua frente.

Kali parece entender o recado.

— Harlan, nós nos encontramos mais tarde — ela diz, tirando a sacola negra por sobre sua cabeça e jogando-a sem cerimônia em uma cadeira ao lado de Leon. — Eu vou pesquisar o que precisamos fazer e, à noite, vou contatá-lo para darmos continuidade ao nosso plano.

Ela se senta e eu permaneço em pé. Sinto-me deslocado e mandado embora.

— Certo.

Faço um gesto com a cabeça para o velho e me pergunto de que maneira devo me despedir da garota. Tudo que ela faz é me olhar com o mesmo olhar profundo e incandescente de sempre. Então, simplesmente me viro e começo a andar na direção da saída.

Antes de sair, no entanto, olho para trás.

Kali põe a faca de gume laser que roubei de Morfeu sobre a mesa.

Leon abre os infográficos sobre anatomia. E os dois voltam a olhar para mim.

Passo o braço no console,faço o check-out e saio.    

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora