Capítulo 77

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A Central de Manutenção da Teia fica desesperadoramente próxima da Praça Atômica.

Sinto como se pudesse ficar no interior do carro dos mantenedores para sempre. Como se, de alguma maneira, eu estivesse protegido sentado no banco traseiro, completamente sozinho. Sem ouvir qualquer tipo de som, devido ao isolamento acústico, sem enxergar nada em meio aos flocos de neve que caem pesados. Sem sentir. Sem pensar.

A larga avenida principal culmina na fortaleza empoleirada sobre uma das faces do morro. O céu escuro fica cada vez mais enegrecido conforme a noite toma conta – e ela o faz tão rápido que, quando chegamos à CMT, o escuro predomina.

O carro desce a rampa para o estacionamento subterrâneo da CMT.

A porta se abre.

Olho para fora, para o estacionamento iluminado e para a ameaça que jaz no exterior. Eu hesito por um instante, e me pergunto o que posso fazer para impedir o que está prestes a acontecer. Mas sou incapaz de encontrar uma motivação, ou mesmo forças, para lutar.

O que está acontecendo é culpa minha.

Dimitri O'Neil mete a mão no carro e me agarra pela roupa, puxando para fora com força.

— Eu não posso. — Digo.

Mas não há tempo para dizer mais nada.

Um mantenedor se aproxima de mim, puxa minhas mãos para trás e as prende com algemas eletromagnéticas às minhas costas. Olho ao redor, para todo o complexo da CMT e para as reforçadas portas que atravessamos, e me pergunto se haveria qualquer remota possibilidade de fugir.

Não.

Não há.

Pelos punhos presos eu sou levado através de um corredor depois do outro. Todos eles são extremamente parecidos, com luzes correndo longitudinalmente em linhas que os perpassam de uma ponta a outra. Tudo tem uma estranha aura de limpeza, com paredes brancas e vidro. Há salas com janelas que dão para os corredores dos dois lados, sempre, mas todas elas têm os vidros opacos, para que seja impossível olhar para dentro. Cruzamos com alguns mantenedores pelo caminho. Há políticos zanzando por todo o prédio, também.

Acessamos um elevador e subimos alguns andares.

Por toda parte há painéis animados que indicam direções e apresentam mapas interativos do interior da fortaleza.

Ao mesmo tempo em que olho para todos os lados e uma ponta de mim sana a curiosidade com relação ao interior da CMT, outra parte, muito maior, deseja ser capaz de dar meia-volta e continuar com minha vida habitual. Mas ela não existe mais.

Quando passamos por uma encruzilhada de corredores, olho para o lado direito.

E tenho um vislumbre de Kali.

Em um milésimo de segundo, ela olha para mim e me identifica, me reconhece, me analisa. O olhar que ela sempre teve, um olhar de fogo. E o fogo em seu interior nunca pareceu ter ardido mais forte do que no olhar de relance que lançamos um ao outro.

Então, ela se vai.

Acessamos um segundo elevador e, finalmente, depois de subir talvez dois ou três andares, paramos em frente a uma porta de folhas duplas muito largas, mas de aspecto pouco oficial. Uma porta de metal, quase grosseira. E, ainda que não haja qualquer número iluminado sobre ela, Dimitri fala:

— Bem-vindo ao seu quarto 101.

O mantenedor passa seu display pelo console ao lado da grande porta, e ela desliza para dentro das paredes, dos dois lados.

Do outro lado da porta há uma sala grande lateralmente, com uma bancada no centro e uma enorme janela de vidro, que substitui toda a parede no lado do prédio virado para o rio e para o subúrbio. Pouco se pode ver das fortes luzes que iluminam a cidade. Do lado de fora, há apenas resquícios das luzes dos postes e outdoors, e uma aura esbranquiçada da nevasca.

Dentro, o ar é denso e pesado. Quase como se fosse sólido, e eu precisasse rompê-lo a cada passo que dou na direção da bancada.

Junto da janela está ninguém mais, ninguém menos que o orador das cerimônias de inserção. Silas Markham. O mestre de manutenção da CMT, chefe de Dimitri O'Neil. A última alternativa minha e de Kali para a imunidade. Nossa última chance.

Desperdiçada.

O homem lança um olhar em minha direção, e então volta a olhar para fora como se eu nem ao menos existisse.

Meus punhos são presos separados à distância de um palmo entre si sobre a bancada, que é magnética. Eu tento me soltar, mas as tentativas são inúteis, e o olhar de desprezo que um dos mantenedores lança para mim define minha tentativa como patética. Decido parar de tentar.

Decido desistir.

Olho para meu lado direito. Leon está na mesma posição que eu, a cabeça baixa, os cabelos tapando parcialmente seus olhos. Ele não parece disposto a olhar para mim. Mas o faz, depois de um tempo. Ele vira seu rosto e eu percebo o quão cansado e destruído ele está. Sua face parece ter envelhecido vinte anos desde a última vez em que o vi. As rugas em torno de seus olhos tornaram-se mais abundantes, assim como se multiplicaram ao redor de sua boca e em sua testa. Suas mãos são frágeis, quase como se seus dedos pudessem ser quebrados com facilidade. Todo seu corpo treme um pouco, suas pernas mal suportam seu corpo em pé.

Leon, ao contrário de mim, já está praticamente morto.

Tento não pensar no que aconteceu com ele enquanto esteve preso na CMT.

Mas, quando ele me olha... ainda há fogo. Ainda há brasa dentro de seu olhar.

— Bem, garoto, você conseguiu — ele diz, por entre seus lábios ressecados. — Conseguiu fazer com que o amor que a Kali tinha por você se transformasse em ódio.

Eu franzo as sobrancelhas.

— Como pode saber disso? — Pergunto. — Você esteve preso durante todo esse tempo.

Ele sorri. Seus dentes estão tortos e há manchas vermelhas neles.

— Sempre há uma brecha. — Diz, com esforço.

Leon ri, mas sua risada se transforma, logo, em tosse.

A porta atrás de nós se abre outra vez.

Sinto um arrepio passando por minha nuca.

Kali é levada por todo o caminho da bancada e trazida à nossa frente. Ela mantém os olhos mirando o chão. Suas mãos estão presas atrás de suas costas, mas, assim que ela é posta em posição, as algemas são soltas. A pistola preto-fosca é colocada sobre a bancada.

Há pelo menos um minuto de silêncio.

Um silêncio pesado.

Kali olha para o chão por mais algum tempo. Ainda que suas mãos estejam soltas, ela age como se ainda estivessem presas. E respira fundo, dando tempo a si mesma. Enquanto isso, o restante dos mantenedores deixam a sala. Restam, apenas, Dimitri e Silas. E eu, e Leon.

E Kali.

Ela solta todo o ar que estava em seus pulmões.

E levanta os olhos.

Em um instante, parece que eu finalmente sou capaz de compreender tudo que se passa no interior deles. O poço sem fundo que eles costumavam ser se torna mais raso. A negritude infinita de suas pupilas se torna limitada, e eu enxergo suas fronteiras. Eu enxergo o fogo que queima dentro dela, eu vejo o gelo que a esfria. Eu vejo a superfície e seus recantos mais obscuros. Vejo a opacidade e a transparência.

Por um instante – um instante apenas –, eu vejo tudo.

E vejo, nisso, que ela ainda não se decidiu.

Ela ainda não sabe o que é. Não sabe se pende para um lado ou para o outro. Não sabe qual é o caminho certo, quem é amigo e quem é inimigo. Não sabe se torna-se quem realmente é ou se ignora completamente tudo pelo que lutou até hoje.

Há fogo e gelo. Os dois se misturam, se mesclam, se tornam um só.

Por um instante, Kali nãosabe nem ao menos quem é.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora