Capítulo 33

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Dois dias depois. Cerimônia de inserção.


— Foi-me perguntado, no outro dia, o porquê de as coisas serem da maneira como são — diz o orador, no palco circular. — Uma pergunta infantil, talvez meramente inocente, a respeito do que, em outros tempos, era chamado de destino. Uma ficção secular, capaz de transtornar a noção de presente, passado e futuro e modificá-la, turvá-la perante nossos olhos. Mudá-la de forma a confundir nossos pensamentos, fazer com que se criem dúvidas e questões que jamais deveriam surgir na mente de um habitante de Dínamo, alguém já inserido na Teia.

Todo o público aguarda.

— A ideia de que alguma coisa, em algum lugar, pudesse estar escrevendo um livro imaginário a respeito da vida de todas as pessoas é completamente irracional. Cogitar que as vidas humanas estivessem pautadas pela mera vontade de uma entidade superior, muito maior e poderosa que qualquer pessoa, é irritantemente imbecil. Qualquer hipótese que não a verdadeira, a que sabemos ser verdadeira com toda a nossa força, no fundo de nossos âmagos, deve ser descartada imediatamente. Refletir sequer por um instante a respeito da possibilidade de o "destino" existir não é uma opção. O que devemos fazer é, antes de mais nada, pensar, sim, mas a respeito da impossibilidade de qualquer uma dessas ideias.

Ele começa a andar para lá e para cá, em pequenos círculos, sobre o palco.

— A subjetividade não é e nunca foi uma boa guia — diz. — A subjetividade é imprevisível, emocional, difícil de controlar e muito propensa a gerar desigualdades e injustiças. Supõe o caos, a desorganização, o irracional e o impulsivo. Todas essas, características com as quais decididamente nenhum habitante de Dínamo iria querer ter de conviver. A objetividade, por outro lado, propõe a igualdade, a racionalidade, o previsível e controlável. O estável. O justo. E, ainda que seja fatal, a segurança.

Olho para Jayden, minha mente vagando muito longe de onde estou.

— O que vai acontecer comigo, quando terminar com todos os meus alvos? — Pergunto.

— Você é um curinga, não é? — Pergunta Mael, surgindo do lado de Jayden.

Faço que sim com a cabeça, embora incomodado com a interferência do namorado de meu amigo.

— Bem, acho que o que eles costumam fazer é recolher você para a CMT e deixa-lo esperando por lá. — diz Jayden, de braços cruzados.

Quem faz isso? — Pergunto.

— Mantenedores, obviamente. — Diz Mael.

— Bem, se depender disso, então acho que tenho razão em ficar preocupado com o término dos meus alvos — digo. — Até agora, nunca vi ninguém ser levado para a CMT tranquilamente.

— É porque a maior parte das pessoas não entende a situação em que se encontra — continua Mael. — São poucas as pessoas que entendem que cometeram erros, crimes ou que, simplesmente, o tempo de inserção delas na Teia já terminou e precisam ceder lugar a alguém mais qualificado, ou que tenha mais alvos.

Jayden se põe um pouco à frente, tapando minha visão de Mael.

— Bem, tenho certeza de que você vai ser transferido para o lugar de alguém com muita coisa pra fazer — diz ele. — Como o próprio orador disse, a objetividade é justa. Como você teve poucos alvos até agora, quando for realocado, com toda certeza vão te dar muitos mais.

Seu namorado põe a mão em seu ombro e volta a se aproximar.

— Na verdade, a maior parte das pessoas que morre e precisa ser substituída tem muito pouca coisa para fazer — ele insiste. — Esses são dados oficiais da Teia. São raríssimas as ocasiões em que essas substituições rendem.

Jayden o empurra para trás.

— Quantos alvos você ainda tem? — Jayden desiste de tentar me consolar.

— Poucos — faço um sinal na direção das cabines dos programadores, nos limites da Praça Atômica. — Só que os programadores sempre insistem que eu tenho que fazer mais coisas, assim como os mantenedores, nos dias de repasse.

— E você está fazendo mais coisas?

— Eu estou tentando. — Digo.

— Mas a investigação a respeito da Kali não vai ajudar você em nada — diz Mael, outra vez se intrometendo. — Ela é completamente inútil.

Jayden volta a empurrá-lo, tentando tirá-lo da conversa.

— Escute, Harlan, eu não acho que o Mael esteja completamente certo, mas é verdade que essa investigação não vai te ajudar a se livrar dos mantenedores — diz ele. — Você precisa roubar mais alguma coisa, antes que eles voltem a te incomodar. Você sabe como eles são. Se você aparece mais do que duas semanas sem nada, vão te colocar no pente-fino. Nós já conversamos sobre isso.

— Só que eles já me colocaram no pente-fino — digo. — Me deram três meses como prazo máximo para eu devolver à Teia o colar que a Kali me roubou. Se não fizer isso, vou ser levado para a CMT.

Jayden fica calado por algum tempo.

— Isso nunca aconteceu comigo.

— Porque ninguém nunca roubou de você algo que não estava previsto para ser roubado — digo. — Tem uma razão para eu estar indo atrás da Kali, e é porque, se eu não for, não sei o que pode acontecer.

No palco, o orador continua falando.

— Está bem — Jayden me segura pelo ombro. — Está bem. Acho que você tem que continuar atrás dela, então. Mas tome cuidado com essa difamadora. Difamadores não são confiáveis sob nenhuma circunstância. Fique de olho.

Faço que sim com a cabeça.

O orador continua falando.

— A palavra destino, a qualquer habitante de Dínamo, hoje já não confere qualquer tipo de reação emocional, subjetiva ou mesmo racional. A palavra destino há de ser apagada de nossas mentes, juntamente com todas as concepções que a acompanham e todas as impossibilidades que a cercam. Hoje já não somos destinados a nada através de coincidências, sorte ou azar. Hoje nos baseamos em padrões, em cálculos matemáticos, fatores muito mais relevantes e confiáveis que qualquer subjetividade.

Ele finalmente para de andar, e se prostra, altivo, no palco.

— Hoje, a palavra destino mudou.

O orador olha para seu antebraço esquerdo, e, então, mira o público.

— Hoje, chamamos o destinode "Teia".

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora