Começo da madrugada. Subúrbio.
É a primeira vez que uso os viadutos que ligam o centro de Dínamo e o subúrbio, e não o trem, para voltar. Debaixo de mim, as luzes brancas da Zona Industrial piscam de leve na atmosfera da noite. O céu escurece cada vez mais, conforme pesadas nuvens tomam conta. Pouco depois de eu chegar ao dormitório, começa a chover.
Paro a moto na rua e tomo cinco minutos para cadastrá-la como minha. Como qualquer veículo da Teia só liga com o display do dono, preciso excluir as permissões do garoto que roubei e transferi-las para mim.
Passo meu braço no console do lado da porta do dormitório, quando termino.
Não há nenhuma luz ligada no lado de dentro. Nunca há. Ignoro minha vontade de tomar banho e trocar de roupa, indo direto para meu beliche e me atirando no colchão. Respiro fundo e solto o ar lentamente, em seguida. Olho para Jayden e Mael, e ambos estão virados para o outro lado, dormindo.
Estico o pé e cutuco Jayden.
— Para com isso. — Resmunga ele, sonolento, sem se virar para mim.
— Jayden. — Eu o chamo em voz baixa, e cutuco outra vez.
Ele dá um grunhido e se vira devagar.
— O que foi, Harlan? — Pergunta. — Já faz algum tempo que eu tô dormindo. E pretendo continuar até o horário de levantar, amanhã de manhã.
— É muito importante.
— Essa coisa importante não pode esperar até amanhã de manhã?
Fico calado, e ele entende a resposta.
— Diga logo o que é.
Olho para o andar de cima da beliche dele e aponto para Mael.
— Você conheceu o Mael porque tirou ele da CMT, não foi? — Pergunto.
— Mais ou menos — responde ele, bocejando. — Ele foi pra CMT porque tinha rompido com uma aliança... ia ficar pouco tempo por lá. Mas eu percebi a situação e, como somos aliados, decidi me mexer e tirar ele de lá. Até hoje nada aconteceu como consequência do que fiz... e já faz uns dois meses.
Faço que sim com a cabeça.
— E como você fez isso?
Jayden coça os olhos.
— Harlan, até que ponto isso é importante para precisarmos conversar agora?
— É importante.
Ele suspira.
— Bom, todo mundo que vai preso na CMT passa por duas instâncias... primeiro, por um filtro lá dentro, pra classificar o que fizeram de errado. No caso do Mael era pouca coisa. Então eles determinam a pena a ser cumprida, baseados em umas planilhas. É tudo tabulado. Depois, cada um dos criminosos vai para um setor diferente do Núcleo de Reprogramação e Ajuste. É onde, geralmente, esse tipo de erro e quebra de fluxo é consertado — ele dá de ombros. — Como o Mael já tinha tido o display corrigido, acho que eles não se importaram muito com a fuga dele. Acho que ele ia ficar lá dentro só por uma semana.
Jayden olha para cima, como se buscando na memória o restante do que fez.
— Pra tirar ele de lá foi mais uma questão de códigos e de hackear o sistema. Eu já te disse que todo sistema tem uma brecha, inclusive o do Núcleo de Reprogramação e Ajuste. Foi uma questão de entrar nos códigos e passar por cima de alguns firewalls e tudo o mais — continua ele. — Foi bem... difícil. Não sei se eu faria de novo.
Subitamente ele estica a cabeça para fora do beliche e olha para cima, certificando-se de que o namorado estava mesmo adormecido.
— Mas saberia repetir?
— Provavelmente.
Jayden parece um pouco mais acordado de repente, e ergue uma sobrancelha.
— Por quê? — As palavras saem devagar de sua boca, desconfiando de alguma coisa.
Mordo os lábios.
— A Kali foi presa.
Meu amigo dá um sorriso torto.
— O que era de se esperar, levando-se em conta que essa garota simplesmente não mede consequências para nada do que faz — resmunga ele. — O que foi que ela fez, agora?
— Tentativa de assassinato. Ela quase quebrou o fluxo de novo.
Ele coça a cabeça.
— O que essa garota tem de errado? — Ele diz. — Mas foi só tentativa, certo? Quer dizer que ela não chegou a quebrar o fluxo. Significa apenas que ela tentou. Então não tem nenhum grande motivo pra eles deixarem ela lá dentro por muito tempo.
— Mas é possível que a punam.
— Ah, isso é certo — responde Jayden. — Já a puniram na primeira vez, com o seu alvo que ela matou antes do tempo. Eles nem precisaram deixar ela presa. A maior punição que ela poderia ter foi aquela que encontrou fora da CMT.
Concordo com a cabeça.
— A quantidade de alvos. — Murmuro.
— Exato.
Jayden volta a dar o sorriso torto.
— Eu sei o que você vai pedir, mas a resposta é não — diz. — Sinto muito, Harlan. Eu acho que não sou capaz de tirar a Kali lá de dentro e me arriscar, já que ela não é minha aliada, nem sua. Além de que é muito difícil tirar alguém de dentro da Central, ainda que haja uma brecha.
Deixo meus ombros caírem.
— Achei que haveria uma maneira.
— Desculpe.
Puxo os lençóis brancos por cima do meu corpo.
— Harlan.
— O quê?
— Acho que você conhece alguém que é hacker e, ao mesmo tempo, é aliado da sua garota.
Olho para meu display e para o ícone dos mapas comgeorreferenciamento.
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Deuses e Feras
Khoa học viễn tưởngEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...