Dentro do furgão, eu olho para Blair e a sacola negra que ele segura em seu colo.
Meus pensamentos se embaralham um pouco.
— Kali disse que você tem explosivos, aí. — Digo, em voz baixa.
Um instante depois, me pergunto o porquê de ter dito isso.
— Não tenho explosivos, aqui — ele diz, e, ainda que seu olhar continue pesado, um sorriso surge em seus lábios. — Eu tenho a verdadeira rebeldia inteira, aqui dentro.
— O que você pretende?
Ele olha de relance para a garota, dirigindo.
— Sua garota me disse que Fenrir queria assumir um ato de rebeldia verdadeira — responde o homem. — Mas que ele precisava de mim, para isso. Não deixa de ser verdade. Ainda que o que tenha acontecido no reality show tivesse relação apenas comigo... talvez eu devesse tê-lo levado junto. Talvez pudéssemos ter tentado algo como o que vocês tentaram. Talvez as coisas seriam diferentes.
Quando ele fala de "minha garota", Kali olha em minha direção.
Eu me pergunto se, em algum momento, ela foi minha.
Mas não sei qual é a resposta para essa pergunta.
— Você pretende se suicidar. — Afirmo.
— Sim. Junto dele.
— E não existe nenhuma opção? Porque as coisas não podem ser diferentes?
Ele dá uma risada de leve. Seus olhos brilham da maneira maníaca de antes. Me pergunto se ele sempre teve esse brilho neles, ou se foi adquirido em sua estadia na CMT.
— Não seja inocente, garoto — ele diz. — A Teia não me manteria na CMT por todo esse tempo sem alterar o meu hardware — bate duas vezes com a ponta dos dedos na têmpora. — Eles colocaram o maldito implante cerebral em mim. Para monitorar os meus pensamentos. Felizmente, o canal de comunicação que a mulher do servidor conseguiu bloqueava o implante. De qualquer forma, não me basta apenas cortar fora meu braço. Se quisesse escapar da Teia, a única forma seria me decapitando. O que de nada serviria.
— E quanto a uma cirurgia?
— Quem a faria? — Pergunta Blair, dando de ombros, largando a sacola preta a seu lado. — Os curandeiros são corruptos e corrompidos. Não veem a verdade que está bem em frente a seus olhos. Preferem se submeter cegamente à Teia. Então a única operação que eles fazem é a de implantar, não a de extrair. De qualquer forma, o alerta de falta de energia vital soaria na CMT, e eles chegariam a mim antes de eu ser capaz de completar a cirurgia. E, pior, é algo muito delicado. Qualquer movimento errado e eu poderia sofrer com sequelas pelo resto da vida.
Eu passo minha mão pelo meu rosto.
— Mas não são só os curandeiros que são corrompidos. — Digo.
— Não — responde ele. — Toda a sociedade foi construída de forma errada. Não deveriam existir castas. Não deveria existir separação ou segregação. Todas as funções são importantes, quaisquer que sejam elas. Todos somos insubstituíveis e únicos. Quem sabe a única maneira de consertar o que historicamente sabemos ser errado seja começando tudo de novo. Mas, até lá, resta cometermos um ato de rebeldia genuína por vez, tentando contaminar o restante da população e, de alguma forma, abrir seus olhos. Mostrar a eles que vivemos em uma distopia e que, se a utopia é inalcançável, pelo menos podemos andar atrás dela, e não na direção oposta.
Kali apenas lança um olhar para nós através do retrovisor, e, depois, volta a olhar para a frente.
— E, entre ficar vivo e inserido na Teia, e morrer livre, eu prefiro a liberdade. — Resmunga o homem, olhando para a sacola preta e remexendo em seu conteúdo, verificando quantidades.
Eu concordo.
Continuamos o restante do caminho sem falar muito.
— Acham que Ellie vai conseguir não ser pega pela Teia? — Pergunto.
— Não. — Os dois respondem, quase em uníssono.
— E quanto a Ceres?
— A Ceres sabe se virar — diz Kali, sem olhar para trás, fazendo uma curva. — Ela sobreviveu durante todo esse tempo dentro de um servidor, o que, tecnicamente, é proibido. Se ela conseguiu burlar as regras até esse ponto, tenho certeza de que vai conseguir continuar fazendo isso.
— E porque ela não quis fugir?
— Porque ela está bem onde está. — Responde Kali.
— Ela se acomodou. — Diz Blair, estreitando os olhos.
Kali olha para ele pelo espelho, mas nada diz.
O furgão avança por mais algumas poucas quadras antes que eu identifique a plataforma de um lado da rua e o prédio em que mora Fenrir, do outro. Kali para junto do meio-fio e desliga o veículo. Depois, se vira para Blair.
— Chegamos. Você está pronto?
Os olhos dele brilham outra vez.
— Mesmo se não estivesse, que opção tenho? — Pergunta.
Ele se levanta e pega a sacola preta. Anda até Kali e beija-a no rosto, segurando sua mão em seguida.
— Obrigado, Kali — ele diz. — Se não fosse por você, nada disso seria possível, e eu ainda estaria apodrecendo aos poucos na CMT. Eu espero que tudo corra nos conformes e que todo esse esforço não tenha sido em vão. Você é uma rebelde. Uma verdadeira rebelde — Ele aperta forte sua mão. — Não se deixe apagar de jeito nenhum. Não permita-se ser controlada, nunca mais.
— Eu não vou permitir.
Blair olha para mim.
— E quanto a você, boa sorte — diz. — Tome cuidado, garoto. É melhor que você aproveite tudo o que foi feito em seu favor. Não duvide, jamais, do quanto essa garota o ama. Ela fez tudo isso para salvá-lo, e conseguiu. Você tem muita, muita sorte.
Ele dá dois tapas leves no meu ombro direito e, depois, abre a porta do furgão e a fecha em seguida.
Depois, vai à porta de Kali e ela abre o vidro.
— Recomendo que vocês estejam longe o mais rápido possível. — Ele diz.
Ela concorda.
Blair desaparece da mesma forma que Ellie, e Kali acelera.
— Sente-se aqui na frente, Harlan. — Ela murmura.
Me puxo para a frente com dificuldade, sentando no banco ao lado do dela.
Ela não diz nada.
Nem eu.
Não é necessário dizer qualquer coisa.
O que dissemos no centro de treinamento foi o bastante.
Blair e Fenrir farão o que têm de fazer, juntos.
Eu e ela, também.
Se eu tivesse uma mão esquerda, seguraria sua mão direita, do meu lado.
Eu a impediria de dirigir. Eu não permitiria que segurasse o volante.
Mas nunca mais soltaria sua mão.
Eu olho para ela, e, por algum motivo... não quero mais deixar de olhá-la.
Junto do amanhecer, vem a explosão.
Uma bola de fogo e fumaça se ergue no meio de Dínamo, sobe no ar e derrete os flocos de neve no caminho. Uma pesada coluna de fumaça surge a partir da pira que se torna o prédio em que morava Fenrir. O negro da fumaça contrasta com o laranja do céu que, aos poucos, se ilumina com a chegada do dia.
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Deuses e Feras
Sci-fiEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...