Capítulo 74

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Começo da noite. Depósito de mercadores.


Andei sem rumo pela cidade por algum tempo, tentando descobrir o que iria acontecer a seguir. Imaginei que, tendo zerado meu display, eu seria prontamente levado pela CMT. Quando Kali matou Lenina antes do tempo, então, pensei que seríamos levados os dois.

Mas nada disso aconteceu.

Kali logo desapareceu de minha vista, e eu a perdi. Tentei, em vão, localizá-la com o mapa integrado ao display, mas ela desativou o dispositivo de georreferenciamento. Ir até Ceres também não me pareceu uma boa ideia. Então, depois de passar a tarde inteira vagando pelo subúrbio, temendo encontrar os mantenedores a cada esquina – ou, pior, encontrar Kali ­–, decidi ir ao depósito.

Jayden não está aqui.

Acesso a mesa com tampo de vidro passando o display pelo console.

As galerias vazias da tela implantada em meu braço aparecem maiores, na tela de vidro. E parecem ainda mais vazias.

Percebo um pequeno ícone vermelho que pisca em um canto.

— Uma atualização. — Murmuro.

Toco no ícone, e uma janela se abre. A atualização vai acontecer dois dias depois da próxima cerimônia de inserção – provavelmente por conta do tempo necessário para os cálculos e cruzamento de dados. A cerimônia é amanhã.

Dentro da janela há uma menor.

— Atualização não aplicável. — Leio.

Kali conseguiu.

Conseguiu o que queríamos desde o começo. Matando Lenina, ela desestabilizou a Teia uma segunda vez. A atualização vai acontecer, mas eu não estou incluído nela. Meu papel já terminou. E de nada vai adiantar recorrer à própria Kali. Não vai adiantar nada tentar convencê-la a continuarmos lutando, a tentarmos, uma última vez, me incluir na atualização.

Ainda que ela tenha dito que me ama.

Decido executar os programas das duas câmeras do centro de treinamento dela.

Uma última vez.

Do alto, posso vê-la sentada no centro do tatame, abraçada aos joelhos, o rosto escondido no meio deles.

Ela está sozinha. O centro de treinamento está em completo silêncio. As luzes foram quase totalmente apagadas.

Sybil surge da entrada.

— O que está fazendo aqui? — Pergunta a tutora.

A fatalista, por sua vez, demora algum tempo para levantar a cabeça e olhá-la. Não sei dizer que tipo de expressão está no rosto dela. Mas, no rosto de sua tutora, não há dureza, como seria de se esperar. Ela também não dá nem uma olhada na direção do tubo metálico com que costuma punir a garota. Apenas se aproxima e cruza os braços, em pé, à frente dela.

— Onde você esteve? — Pergunta Kali, sem responder à pergunta da outra. — Nós treinamos à tarde. Em todas as tardes.

Sybil balança a cabeça.

— Nem todas. Não hoje.

As duas se encaram.

— Eu ouvi o que estão dizendo.

— O que estão dizendo? — Pergunta Kali.

— Estão dizendo que você desestruturou a Teia outra vez — diz Sybil. — Que você matou outra pessoa fora de seu display. Pelo visto, todos os esforços da Teia em reprimi-la não funcionaram. Você é uma verdadeira rebelde.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora