Começa a nevar.
A cada passo que dou, a quantidade de flocos de neve que desce do céu parece maior. Primeiro delicadamente, pousando no chão com suavidade. Aos poucos, aumentando de intensidade.
E, então, caindo com força, com brutalidade.
Uma nevasca.
Atravesso a Praça Atômica com bile no fundo da garganta e as pernas como chumbo. Todo o meu corpo quer fugir, quer virar as costas e encontrar outra saída da praça. Mas minhas pernas agem mecanicamente, como que magnetizadas, me levando, inevitavelmente, de encontro a meu destino.
— O braço.
Sou o último a sair da praça.
Olho para a mulher no interior da cabine de vidro. Ela não olha para mim, mas para uma tela complementar pousada sobre a sua minúscula bancada. Há algumas fotos aleatórias girando em um slideshow, que ela acompanha avidamente.
Eu estendo meu braço esquerdo para ela.
A grade vermelha do escâner passa pela assinatura do meu display.
As informações aparecem em uma janela pop-up na tela complementar da programadora. Ela passa um dos dedos e descobre que não há barra de rolagem. Que as galerias estão realmente vazias.
— Eu zerei meu display. — Digo. As palavras saem secas e sem vida.
A programadora concorda lentamente com a cabeça.
— Sim. É verdade — ela diz, e toca na tela outra vez. — Fomos avisados a seu respeito.
Ela digita alguma coisa.
— Por favor, aguarde.
Eu o faço.
Quase dez minutos depois, abraçado a mim mesmo e com frio até os ossos, um carro se aproxima e, dele, sai Dimitri O'Neil. A programadora faz um sinal para ele e o mantenedor concorda. Ele traz um tablet em sua mão. E vem sozinho.
— Harlan Montag — diz ele, andando com a postura ereta. — Mercador salteador.
Espero enquanto ele se aproxima.
— Acredito que nos encontramos em uma situação sem precedentes — ele diz, sem sorrir ou demonstrar qualquer expressão. — Ou, uma situação rara. É muito raro encontrar fatalistas que não concordam com sua posição social e decidem que algumas pessoas merecem ter o arco fechado depois das outras. Decidem matar uns em prol de outros, visando mantê-los vivos, ainda que sua serventia na Teia seja nula. E, então, essa pessoa ficará ocupando o lugar de direito de um recém-inserido, e haverá um excedente populacional que desestabilizaria nosso sistema. Algo que é completamente não-desejável. Você acha justo matar uns e não outros?
Não consigo descobrir qual é a resposta certa.
Então fico calado.
— É, definitivamente, uma prática que não pode ser incentivada — diz O'Neil. — Uma prática que deve ser reprimida, na verdade, com artifícios diversos. Punições indiretas, muitas vezes. É o que estamos vivenciando, agora. Você compreende que seu par era uma fatalista que acreditava ser capaz de subjugar a Teia e que, para reprimi-la, foi necessário encontrar uma maneira de puni-la indiretamente? Isso envolve você, é claro. Às vezes, é preciso abrir mão de elementos menos úteis à sociedade para poupar outros, mais relevantes.
Meu estômago revira. A bile sobe à minha língua e eu sinto seu gosto azedo.
— Certamente há um consenso quando tratamos de curingas — continua Dimitri. Olho para suas mãos, protegidas por luvas. — Um consenso de que, de certa maneira, são apenas peças de substituição. Peças de substituição só têm serventia quando há alguma coisa a ser substituída. E, se as perdermos, pelo menos no que diz respeito ao sistema da Teia, podemos facilmente produzir uma nova peça, similar ou melhor do que a anterior, para o mesmo fim. Podemos fabricar uma nova peça substituta. Por isso, perder um curinga não é algo que possa ser considerado relevante.
Nada faço além de ficar parado.
Não há mais nada que eu possa fazer, de qualquer forma.
— Você compreende?
Meus lábios parecem colados um ao outro.
— Eu preciso de sua confirmação verbal.
— Sim. Eu entendo.
— E concorda?
Uma chama fraca parece se acender dentro de mim.
— Se eu não concordar, alguma coisa vai mudar?
O mantenedor apenas me olha por alguns instantes. Então, estranhamente, se aproxima e põe a mão nas minhas costas, começando a me empurrar com certa delicadeza na direção do carro.
— Escute, garoto, eu sei bem o que você está pensando — diz Dimitri, falando em um tom que tenta ser amigável. — Sei que você está pensando pelo lado individualista da coisa. Do lado do que você quer e do que você sente. Sei que pode parecer injusto ter o arco fechado tão cedo, mas você deve entender que o que estamos fazendo visa apenas o bem-comum. A segurança de toda a população de Dínamo. Para garantir os destinos de uma quantidade absurda de pessoas, tudo que precisamos fazer foi remodelar ligeiramente a Teia de forma a colocar as coisas nos eixos, sem afetar um grande número de indivíduos. E a única forma de fazer isso era envolvendo especificamente você. Como uma pessoa, é natural que você se sinta injustiçado.
Nós paramos junto da porta do carro.
— Vamos falar em termos biológicos, e não sociais, para facilitar o seu entendimento — o homem diz. — Digamos que a Teia é um organismo vivo. Um ser, um animal, uma pessoa. Tudo dentro de uma pessoa é conectado. Isso significa que, quando alguma parte sua fica doente, todo o sistema fica doente. Quando a ponta de um dedo começa a gangrenar, não se pode fazer nada a não ser tratar do problema. E, se a solução para o problema for decepar a ponta do dedo, com toda certeza o dedo não fará objeção a respeito disso. Ele compreende que, estando doente, é, de certa forma, sua obrigação ser decepado. Em prol do restante do corpo. Para que o restante do corpo continue vivo, em funcionamento. O dedo não se rebelará ou achará injustiça ser excluído do corpo, pois sabe que é pela segurança dele que está sendo sacrificado.
— Eu não sou um dedo. Não sou uma peça. — Eu digo, olhando para ele.
A porta do carro é aberta e eu sou empurrado para dentro.
Entro a contragosto.
O motor chia com força e potência, e saímos da inércia.
Sentado no banco traseiro, vejo apenas um vidro opaco à minha frente. Estou isolado da parte dianteira do veículo.
Olho para fora da janela,para a nevasca que aos poucos se torna mais e mais forte.
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Deuses e Feras
Ciencia FicciónEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...