Capítulo 10

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Dois dias mais tarde. Refeitório da Kali.


Demora muito pouco para eu descobrir que o que vi no primeiro dos dias seguindo Kali é basicamente o que ela faz em todos os outros. Sua rotina é simplória, ainda que envolva práticas pouco comuns, e, claramente, seja bem delimitada e regrada. Ela sempre cumpre com todos os horários e expectativas, até porque sua tutora parece bastante disposta a puni-la por chegar atrasada. Kali é exemplar.

Exceto quando decide assassinar alguém.

Passo pelas bancadas e deixo que os empregados de casta laboradora do outro lado da bancada sirvam a comida nos espaços determinados da minha bandeja. Agarro um garfo e uma faca, pego um copo com suco sintetizado e ando como se realmente pertencesse a esse refeitório, apesar de sentar completamente sozinho.

Encontro uma mesa da qual possa enxergar meu alvo e começo a comer. De alguma maneira, espero que espioná-la possa me ajudar a descobrir o que devo roubar.

— Ellie, nos encontramos lá fora. — Ouço.

A garota de cabelos vermelhos senta à minha frente, na mesma mesa que eu. As três amigas que a acompanhavam – incluindo Ellie, a mesma que a acompanhou até Kali, no outro dia – seguem em frente e sentam em outra mesa. Encaro o conteúdo de minha bandeja por algum tempo, me faltando coragem para levantar os olhos para a garota.

— Qual é seu nome? — Ela pergunta, repentinamente.

— O quê?

— Qual é seu nome e casta?

Meu cérebro trabalha rápido, tentando descobrir por que essa garota sentou nessa mesa.

— Qual é o seu nome? — Pergunto, tentando me esquivar.

Ela dá um sorriso com os lábios vermelhos, sem mostrar os dentes.

— Meu nome é Lenina, sou uma mercadora. Estou aqui a trabalho, ou, a serviço da Teia, como você preferir.

Levanto uma das sobrancelhas na direção dela, mas o sorriso permanece lá, intocado.

— O que quer vender?

— Informações. — A voz dela é suave.

Eu a examino por alguns instantes. É uma garota que deve ter a mesma idade que a Kali, talvez um pouco menos. Cabelos antes vermelhos que ruivos, cacheados, os lábios com um batom quase tão vermelho quanto os cabelos. Tem um pequeno tope preto prendendo algumas mechas perto da orelha esquerda, deixando o resto solto. Os olhos são grandes, expressam bem as emoções – ao contrário dos de Kali, estreitos e aparentemente insensíveis. A pele dela é bem clara, com pintas espalhadas por aqui e ali. O rosto é redondo. Veste roupas apertadas, embora esconda a pele.

— Que tipo de informações?

— Posso vender a você toda e qualquer informação que desejar saber a respeito dela — um dos dedos finos e de unha comprida dela aponta na direção de meu alvo. Agarro a mão dela e a prenso contra a mesa, impedindo-a de continuar apontando. — Qual é o problema?

— Quero passar despercebido.

Surge no rosto dela um sorriso zombeteiro, como que duvidando do que acabei de dizer.

— Você não conseguiu passar despercebido por mim.

Respiro fundo.

— O importante é passar despercebido por ela.

— Dê uma boa olhada e eu tenho certeza de que falhou com ela, também.

Olho para Kali, aparentemente entretida com a comida em sua bandeja.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora