A palavra soa estranha.
Paira no ar entre nós e, conforme se dissipa, torna-o mais pesado e difícil de respirar.
Uma atmosfera elétrica se instala entre os nossos corpos.
Os punhos de Kali se crispam, os nós de seus dedos ficam brancos. As unhas se cravam nas palmas de sua mão.
E então, subitamente, ela usa toda a força de seus braços para lançar-se para fora da cadeira.
E sobre o mantenedor.
Os dois desabam no chão.
— Seu puto! — Ela grita, com todas as forças.
Depois, um grito que nada diz. Um grito de fúria.
Sua voz falha, o grito rasga e arranha em sua garganta.
Seus punhos sobem e descem sobre o rosto do mantenedor que, em vão, tenta se proteger com os braços.
Kali agarra seus cabelos e os arranca com selvageria.
Suas unhas raspam a pele dele, rasgam-na, afiadas.
Ela segura com força a cabeça dele e a bate com toda a força contra o chão.
Bate-a até que sangre.
Seus olhos, maníacos, sobem para a faca em minha mão.
Kali estende a sua mão direita e a segura pela lâmina, tirando de minha mão.
E a ergue acima de sua cabeça.
Silas enfim interfere e segura com força seus braços.
Três mantenedores entram com urgência na sala e a separam dos dois homens.
Eles a erguem e põem de volta na cadeira.
Tiram, dela, a faca.
E prendem seus pulsos outra vez nas algemas eletromagnéticas.
Mas seus braços tentam soltar-se alucinadamente.
O'Neil é amparado pelos mantenedores, mas recusa a ajuda para levantar.
Ainda que seus olhos estejam arregalados por conta do ataque repentino, ele continua sorrindo. Um fio vermelho de sangue escorre pelo lado de seu pescoço, e há marcas vermelhas compridas onde as unhas dela rasgaram seu caminho.
Kali cospe nos pés dele.
— Você é um lixo — ela diz. — Não passa da porra de um monte de bosta.
O homem olha para ela, mas não diz mais nada.
E, então, simplesmente sai da sala.
É a última vez que o veremos.
O orador, por outro lado, permanece conosco, mas junto da janela. Não parece surpreso com a reação da garota, mas sua expressão é pensativa.
— Atacar O'Neil é como atacar um parafuso de uma imensa máquina — diz ele. — O mesmo que significaria atacar a mim. Seria tentar demolir uma fábrica com a destruição de um dos pregos de sua estrutura. Por mais que este prego seja, sim, importante, não é insubstituível e, como todos os outros pregos, serve à mesma função. Caso este prego seja danificado, os outros pregos continuarão com o trabalho do primeiro. A estrutura jamais desmoronará.
— Eu gostaria de ser capaz de destruir cada banco de dados, cada servidor, cada cabo de fibra óptica — Kali diz, entre os dentes, e uma última vez há fogo em seus olhos. Uma última, derradeira chama. — Queria decepar braço a braço e, caso haja apenas implantes cerebrais, cabeça a cabeça, até que já não haja mais nada. Até que já não haja mais Teia.
Markham apenas a olha.
Passam-se alguns momentos em silêncio.
— Vocês serão monitorados integralmente até o momento da consumação da relação alvo-conquista — diz ele, outra vez segurando as duas mãos atrás das costas. — Como no reality show de que Edward Blair participou, essa consumação será transmitida na cerimônia de inserção de hoje, não apenas aqui, mas, também, em todo o mundo. Vocês serão apresentados como personagens sem nome, com uma história decrépita de falso heroísmo e terrorismo contra a Teia, de rebeldia e das consequências desses atos impensados. Nossa intenção é a de não criar ídolos, mas exemplos. Exemplos de como a rebeldia influencia negativamente qualquer tipo de situação e como a Teia lida com esses casos.
Kali meneia a cabeça.
— Lavagem cerebral.
— Não — diz Silas Markham. — Como a vocês, a opção é dada. A opção de permanecer em segurança, no seio da Teia; e a opção de partir para a subjetividade e a rebeldia, e arcar com as consequências de seus atos.
Ela crispa as mãos outra vez.
— Não há opção. Nunca houve opção alguma.
Ele pisca algumas vezes.
— Talvez não. Mas todos os nossos esforços visam, antes de qualquer outra coisa, manter a população em segurança. Mantê-la seguindo um caminho designado e seguindo o fluxo. Um fluxo capaz de fazer a sociedade humana evoluir mil anos em cem. Este é o custo do progresso.
— Transformar-nos em máquinas. Em engrenagens, em parafusos.
O orador olha para ela.
— Em circuitos, em chips, em displays.
Com a língua grudada no céu da boca, olho para baixo, para meu novo display.
Para a máquina implantada em minha pele, uma máquina capaz de me definir, de me aprisionar, de me viciar. De me guiar. Uma extensão de meu ser, uma extensão do que sou; um órgão vital para o funcionamento natural de meu corpo. Uma conexão integral.
Finalmente abro a boca para falar.
— E se eu me recusar a cumprir com esse meu novo destino? — Pergunto, a voz rouca e falhada.
— Como você seria capaz de fazê-lo? — O homem questiona. — Como seria capaz de se recusar a seguir o fluxo, quando está conectado integralmente a nós? Estamos todos interligados. Estamos dentro de sua mente. Se você mudar de ideia, nós saberemos. Mas não se preocupe. Depois que cumprir com este seu último alvo, você assumirá sua posição como curinga e será realocado dentro da Teia. O fluxo deve continuar.
Ele lança um olhar severo para cada um de nós, e demora-se alguns segundos mantendo-o.
— Vocês tiveram o que queriam — diz ele. — Conseguiram uma atualização. Agora é o momento de arcar com as consequências de sua subjetividade. De arcar com as consequências de suas decisões precipitadas, irracionais e desregradas. Ninguém pode ser maior do que a Teia.
Markham vira-se para o outro lado. E sai da sala.
Ninguém é insubstituível.

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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...