Capítulo 18

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Duas horas mais tarde. Em uma exposição.


A Galeria de Artes de Dínamo é um prédio um tanto quanto diferente, repleto de curvas e formas que o tornam pouco prático. Há pequenas cascatas caindo por essas curvas, despejando água em uma piscina com um fio de água pelo qual passa uma passarela até a porta de entrada. Acima desta, feito inteiramente de vidro, há um prisma de seis lados. Discreto, mas, ainda assim, está lá.

Desisti de perseguir a Kali depois do que ela disse, mas, devido ao fato de Fenrir, seu alvo, ser a pessoa atrás da qual ela estava indo, decidi pesquisar a seu respeito usando o display. Surpreendentemente, foi bastante fácil encontrá-lo.

Fenrir Roth é um artífice, ou seja, uma pessoa responsável por criar obras de arte que vão desde pinturas e esculturas até a produção de narrativas. Embora, ao meu ver, a casta dos artífices seja completamente irrelevante, a fila para entrar na galeria de arte anuncia o contrário: há muito mais que uma centena de pessoas entusiasmadas em ver o que está no interior. Hoje é a abertura de uma nova exposição, o que significa que o alvo de meu alvo estará aqui.

E ela, também.

O espaço no interior é bastante amplo, com diversas paredes brancas vazias, por enquanto. A partir do momento em que a exposição for aberta, as obras serão projetadas nelas. Em um dos lados há uma parede branca maior, em frente a uma gigantesca área envidraçada que dá para um dos jardins artificiais do lado de fora.

Quando todos os visitantes estão em frente a essa parede, a projeção começa. Fenrir aparece nela. É um homem aparentemente baixo, troncudo e musculoso, de cabelos loiros compridos, pele branca e rosto quadrado.

— Achei que ele estaria aqui. — Comento comigo mesmo.

— Fenrir faz tudo via videoconferência — diz um homem a meu lado, a esmo. Seus olhos estão grudados na projeção. — Provavelmente está em seu apartamento na zona Oeste. Ele raramente vem a público, pois tem medo do que suas obras podem acarretar.

— O que suas obras podem acarretar? — Duvido.

O homem concorda com a cabeça.

— É. O homem é um rebelde, afinal de contas.

Ergo uma das sobrancelhas, mas permaneço quieto. Passo o tempo que dura o discurso do artífice procurando por Kali, em vão. Olho para meu display. O ponto vermelho que a caracteriza encontra-se na zona Oeste, o que agora faz completo sentido.

O discurso termina e a projeção se apaga. Os visitantes se dispersam para examinar as obras, agora visíveis nos quadros antes vazios. Decido olhar uma delas, antes de ir à zona Oeste.

Olho por alguns instantes, pasmo.

— Mas que...

A tela quadrada mostra, em seu centro, um quadrado negro e sólido com um círculo branco vazado, no meio, do qual uma linha sai na diagonal e atinge seu canto superior direito. É a totalidade da obra.

— Fenrir retrata sempre a nossa realidade e cotidiano em Dínamo — diz o homem, outra vez a meu lado, visivelmente empolgado. — Fenrir é um rebelde. Ele é o único capaz de ver a mentira em que vivemos e se arrisca ao expor a Teia desse jeito. Veja bem, a Teia é o quadrado, que aprisiona cada um de nós, representados pelo círculo. Fenrir mostra o caminho para sairmos de nossa prisão, pela linha que foge para fora do quadrado, escapando para fora da Teia.

— Quer dizer que estamos aprisionados na Teia? — Pergunta uma mulher do outro lado dele.

— Sim. É isso que ele quer dizer.

— E como se foge? — Questiono.

O admirador coça a cabeça.

— Como é?

— Se o certo a se fazer é fugir da "mentira" que a Teia é, como se faz isso? — Pergunto, enquanto olho para o quadro uma segunda vez. Todos os outros, à volta, também são preto e brancos. — E porque ele ainda está inserido na Teia, se ele mesmo diz que devemos escapar dela?

O homem e a mulher se entreolham por um instante.

— Ele comentou alguma coisa sobre isso na última das suas exposições...

— Eu estava lá.

— Ele disse alguma coisa sobre a rebeldia estar no próprio display...

A mulher engole em seco e concorda com a cabeça.

— A questão é que a rebeldia reside em estar inserido na Teia — diz ela, gesticulando enquanto aponta para o quadro à nossa frente. — É a rebeldia prevista. Segundo Fenrir, a própria Teia escolhe alguns indivíduos para serem rebeldes.

— Porque ela faria isso?

— Faz parte do sistema. É um contraponto necessário. — Explica o homem.

— Esses dados estão nos displays das pessoas portadoras da rebeldia prevista. São codificadas em dados ocultos, porque o simples fato de os rebeldes prescritos saberem que são rebeldes prescritos muda completamente toda a sua noção — continua a mulher, depois de agradecer pelo comentário do homem com um gesto da cabeça. — É natural que alguém que se julga rebelde aja de acordo com essas predefinições dos dados ocultos. Então, muitas vezes, ao sermos rebeldes, estamos fazendo apenas o que a Teia nos diz, através de nossos displays.

Balanço a cabeça.

— Mas como alguém cumpriria conquistas ocultas? A pessoa seria incapaz de saber o que deve fazer.

— A Teia tem inúmeras maneiras de guiar as pessoas. — Retruca a mulher.

— É por isso que Fenrir continua inserido na Teia — diz o homem, dando um sorriso entusiasmado com a suposta lógica de seus pensamentos. — Ele é um rebelde previsto. Seu principal ato de rebeldia, então, é o de seguir com o conteúdo original de seu display, ignorando os dados ocultos que ele sabe existirem. Ele é rebelde meramente por ainda estar inserido.

— É um paradoxo. — Resume a mulher.

Minha vez de coçar a cabeça.

— Quer dizer que ser rebelde é fazer o que a Teia diz para fazermos através dos displays?

— Sim! — Os dois dizem, em uníssono.

— E se meu destino fosse ser alguém normal? Então ser rebelde seria ir contra o display, já que me faltariam os dados ocultos. — Penso em voz alta.

— É aí que está o paradoxo. Como você vai saber que a Teia previu que você será rebelde? — Pergunta o homem. — A única maneira de fazer isso seria lendo os dados ocultos, mas fazer isso seria rebeldia, e se a rebeldia estivesse em seu display, você estaria sendo condescendente.

Ficamos olhando para o quadro do quadrado negro, o círculo branco e a linha que escapa.

— Parece complicado, mas, na verdade—

— E se eu decepasse meu braço? — Pergunto.

Todos nós três ficamos em silêncio por pelo menos dez segundos.

— Porque você faria isso?

— Perderia seu display.

— Seria a verdadeira rebeldia — digo, ainda olhando para o quadro, enquanto eles me olham. — Me livraria do display e de todas essas dúvidas e paradoxos.

Os dois dão um sorriso que logo se transforma em pequenas risadas, que eles abafam rapidamente.

O homem, mais próximo de mim, bate com a mão duas vezes em meu ombro, de leve.

— Pelo menos você tem dois braços. — Diz, sorrindo.

— Por quê? — Pergunto.

— Para implantar um novo display no outro.    

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora