Dois dias depois. Próximo ao posto avançado dos mantenedores.
Esperamos debaixo de um toldo em frente a uma vitrine de loja, olhando para a pequena torre de vidro que preciso invadir outra vez. Jayden parece um pouco mais preocupado, hoje. Mael se recusou a cometer outro delito deste porte, nas palavras dele.
— Harlan, não acha que é exagero roubar duas vezes o mesmo posto avançado?
Faço que não com a cabeça, olhando para o lugar.
— Na verdade, faz sentido — digo, um pouco mais convicto do que realmente estou. — Quero dizer, eu já roubei esse posto antes, o que quer dizer que já tenho nectarina cadastrada no meu display. Como o pagamento dela para a hacker da Kali foi fora do display, faz sentido que eu roube mais para... preencher essa lacuna no meu relatório de bens, certo?
Meu amigo aperta as duas mãos entre si, enquanto olha para mim.
— Não sei se é assim que funciona.
— Fique quieto, eles estão saindo.
Observamos novamente enquanto os mantenedores do próximo turno se encontram com os do turno anterior, perto da casa de sádicos. Eles passam pela porta, e eu e Jayden nos aproximamos da torre de vidro.
Ele acessa o console do lado da porta deslizante e logo alcança seus códigos. Ele tenta mais de uma vez, antes de conseguir abrir a porta, que desliza com som pneumático. Eu entro.
— Vou ficar aqui fora, dessa vez. — Diz Jayden.
— Por quê?
— Para o caso de algo sair do controle.
Concordo com a cabeça, um pouco incomodado, e entro.
Meu display não brilha. Meu alvo já foi roubado e a conquista já foi marcada como concluída. Procuro ao redor por algum pacote, mas é ingenuidade acreditar que uma droga pesada como a nectarina seria encontrada em cima de um balcão.
Me agacho e tento abrir uma das portas do armário junto ao chão.
Trancada.
Talvez haja diferença entre algo que eu devo fazer e o que faço por minha própria conta. O fato de que o armário abriu, da última vez, deve ter alguma relação com o fato de eu precisar roubar aquela droga. Agora, como a conquista já foi realizada, o armário está trancado.
— Jayden, você consegue abrir isso?
Ele olha para dentro, tenso.
— Harlan, eu não sei se vai dar tempo de—
— Você consegue?
— É claro. — Ele diz, levantando uma sobrancelha, como se não acreditasse que eu duvidava de sua capacidade.
— Então abra.
Jayden corre para dentro e cai de joelhos em frente ao console. Ele desdobra a trava em páginas de códigos complexos e passa a testar senhas. Ele pluga um pequeno dispositivo de armazenamento móvel em uma entrada e faz rodar um programa específico.
— O que é isso?
— Um programa capaz de descobrir qualquer senha — responde ele, os olhos grudados na interface do console. — Ele testa todas as possibilidades até achar a correta. O maior problema é que a capacidade de processamento de um console de armário é bem pequena. Não sei quanto tempo vamos ter pra fazer isso.
Nós dois olhamos para o lado de fora ao mesmo tempo, tensos.
— Vá você lá fora, agora. Se os mantenedores estiverem vindo, dá um grito que a gente foge.
Concordo com a cabeça e atravesso a porta deslizante outra vez.
A noite é relativamente fria, principalmente por conta da garoa que desce pelo ar insistentemente, molhando aos poucos a roupa de quem se aventura pelas ruas a essa hora. A cidade está silenciosa, apesar dos pedestres e da música abafada da casa de sádicos, que toca sem parar.
Passam-se cinco minutos. Começo a ficar preocupado. Jayden continua junto do armário, agachado, quando subitamente a porta da casa de sádicos se abre.
— Jayden, falta muito?
— Quase nada.
Decido esperar um pouco mais. Se disser que os mantenedores estão chegando, ele com toda certeza vai querer fugir.
— Está pronto. — Ele diz, segundos depois.
Me apresso para entrar no posto avançado e me lanço de joelhos no chão, procurando o mais rápido que posso por algum pacote de nectarina. Tiro algumas coisas do caminho até encontrar um pacote duas vezes maior que aquele que usei para pagar Ceres. Eu o pego e levanto.
— Vamos embora, os mantenedores estão chegando.
— O quê? — Pergunta Jayden, indignado. Estou prestes a passar pela porta quando ele me interrompe. — Todos os itens do posto avançado deles têm chips para não saírem daqui, Harlan! Se a gente sair agora, com eles tão perto, vamos ser pegos.
— E o que eles podem fazer a respeito?
— Podem nos levar para a CMT, e então não vai servir de nada termos vindo até aqui! — Diz ele.
Nós nos olhamos por um milésimo de segundo e, então, corro para fora do posto avançado.
A baixa torre de vidro se ilumina com luz vermelha e uma sirene baixa começa a tocar. Os mantenedores também correm, assim que nos veem fugindo. Mas eles entram no posto avançado. Quando saem, têm armas nas mãos.
— Mas que porra! — Grita Jayden, correndo mais rápido.
O som dos disparos é acompanhado por uma profusão de fagulhas e faíscas alaranjadas dos projéteis, nos perseguindo. A luz das fagulhas reflete no vidro das vitrines e das janelas dos prédios próximos, a rua fica laranja a cada piscar de olhos.
Sinto uma queimação e dor na panturrilha direita, depois no ombro, do mesmo lado.
Jayden tropeça, mas continua correndo do meu lado até virarmos uma esquina, depois outra e outra. Olho para trás antes de pensar em parar. Não vejo os mantenedores em lugar nenhum, e não sei se eles vão nos perseguir. Depois, com a quietude da noite e a calma com que desce a garoa fina, decido que conseguimos fugir. Ainda que talvez tenha sido a intenção dos mantenedores que isso acontecesse.
— Harlan... eu te mato. — Jayden põe as mãos sobre os joelhos, ofegante, tentando se recuperar.
Levanto a perna da calça e vejo uma marca inchada e redonda na panturrilha.
— Eles me acertaram.
— Não tem problema — diz ele, enquanto tira das minhas mãos o pacote de nectarina. Procura por apenas um instante e, então, arranca um pequeno chip de rastreamento, jogando-o para longe. — Os mantenedores não podem usar armas letais. Só usam balas de borracha ou, no máximo, eletroarmas. Você sabe que é ilegal matar alguém antes que se esteja pronto... e, de qualquer forma, aqueles são mantenedores comuns. Só os fatalistas matam.
Massageando o lugar onde a bala me acertou, olho para ele.
— Até parece que eu não seidisso. — Digo.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...