Começo da noite. Feira de mercadores.
Ando a esmo pela feira, sem procurar nada em específico, os olhos vagueando de uma banca para outra. Vejo uma delas vendendo HD's e dispositivos de armazenamento móveis. Outra vende relógios que funcionam com energia vital. Uma terceira faz o comércio de armas – inclusive facas. Uma quarta vende joias.
Jayden e Mael disseram que me encontrariam no dormitório. Eles precisam de um tempo sozinhos, como qualquer outro casal.
A cerimônia de inserção terminou há pouco, e eu não tive nenhum vislumbre de Kali, de Lenina, Ellie ou qualquer outra pessoa conhecida. Há muito tempo evito olhar para o mapa virtual na tela do meu braço e para o círculo vermelho que representa a fatalista.
Prefiro não saber onde ela está.
Sinto alguém pegar em minha mão e a puxo de volta, com força, assustado.
Olho para trás e percebo Lenina no meio da multidão, os cabelos vermelhos inconfundíveis. Seu rosto mostra preocupação fora do comum. Seus olhos estão fundos outra vez.
— Lenina — digo. — O que houve?
Ela volta a se aproximar de mim, passando por entre algumas pessoas.
— Eu... preciso falar com você.
Fico sério.
— O que aconteceu?
— Não aqui. — Ela diz.
Sua mão busca pela minha e ela segura com força. Logo percebo que suas mãos estão frias e tremem um pouco. Olhando melhor, percebo que toda ela treme. Há algo de soturno preenchendo-a tão bem que esse sentimento escorre para fora, passando de seus dedos finos para os meus e me contaminando.
Ela me puxa pelos corredores formados pelas barracas e caminhamos até uma área um pouco mais afastada, próxima da Praça Atômica, agora vazia. O Sol desce atrás do monumento no centro da praça, as linhas que o formam projetadas na calçada. Restam, aqui, apenas alguns programadores registrando suas próprias conquistas nos computadores, trancando as cabines de controle com os displays e indo embora, também, ou encontrando-se uns com os outros para conversar.
Lenina puxa meu pulso para que fiquemos frente a frente.
Estendo meu braço esquerdo para ela e ela o empurra sem muita delicadeza de volta na minha direção.
— Achei que você precisasse falar comigo — digo. — Imaginei que tivesse alguma informação nova para me vender.
Ela balança a cabeça e as mechas vermelhas de seus cabelos tapam seu rosto. Uso a mão direita para colocá-las atrás de suas orelhas. Os olhos dela lacrimejam, e ela limpa as lágrimas deles antes que caiam.
— Não — ela murmura, a voz tremendo como nunca. — Dessa vez, sou eu quem precisa de ajuda. Da sua ajuda.
Lenina segura fracamente minhas mãos com as dela. Eu as ponho sobre as minhas palmas e as aperto.
— O que aconteceu?
A mercadora volta a balançar a cabeça.
— Eu... contratei um hacker pra fazer um serviço rápido pra mim — diz ela, olhando para o chão com a voz tremida. — Achei o anúncio do serviço pesquisando na Teia, foi coisa simples. Ele não me cobrou quase nada.
— Sim. Que serviço era?
— Eu queria ter acesso ao display da Kali — a garota continua. — Você tinha dito que estava sem bloqueio, agora. Imagino que isso tenha acontecido quando ela foi para a CMT. Quis aproveitar, antes que ela o bloqueasse de novo, por algum motivo. Queria saber o que mudou no display dela e se realmente fui parar na galeria de rivalidade.
Aperto com mais força as mãos dela.
— Porque você se importaria em ser rival ou não dela?
— Porque fomos aliadas durante todo o meu período de inserção — ela replica. — Por mais de nove anos fomos aliadas, e, então, as coisas simplesmente desandaram de uma maneira... eu não sei o que aconteceu. Não consigo entender o que foi que aconteceu. Sei que não fazia sentido para mim que tivesse simplesmente entrado em outra galeria.
— E você está na galeria de rivalidades dela?
Lenina concorda.
— Sim. Eu e ela não somos mais aliadas, nem amigas — fala, e sua voz vai diminuindo de volume. — Mas não foi só isso que eu descobri.
— O que você descobriu?
A garota nada diz, e continua olhando para o chão. Seus cabelos se desprendem de suas orelhas e voltam a tapar seu rosto. Como ela fez comigo, seguro seu queixo e puxo seu rosto para cima, forçando-a a me encarar. Seus olhos estão vermelhos e inchados e, deles, surgem lágrimas que descem por toda a extensão de sua face, chegando até o queixo e molhando os meus dedos, que o seguram.
— O que você descobriu, Lenina?
Minha voz agora é mais dura e enfática.
A garota respira fundo antes de falar.
— Eu sou um alvo dela.
Seu corpo inteiro começa a tremer mais forte. Ela tenta se enfiar em meu peito, se esconder, de alguma maneira, em meus braços. Mas eu a impeço e a forço a continuar me olhando.
— Você... Kali é sua fatalista? — Pergunto, descrente.
Ela apenas assente com a cabeça.
Lenina solta os braços do aperto de meus punhos e se joga contra mim, me abraçando em uma estranha ânsia por ter meus braços a envolvendo. Eu os passo em redor dela, mas há algo de mecânico no movimento, algo de errado, como se minhas juntas, metálicas, rangessem enquanto seguro seus ombros. Ela fecha os olhos e se esconde, mas eu mantenho os meus abertos, o rosto voltado na direção da feira.
Os últimos raios de Sol se despedem por detrás das montanhas e atingem um dos corredores.
Ela está lá.
O rosto virado em nossa direção, contra o Sol, as feições frias.
Kali.
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Deuses e Feras
Bilim KurguEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...