Duas horas mais tarde. Centro de treinamento.
Sou forçado a fazer o caminho mais longo para voltar ao subúrbio, mas, dessa vez, com o pé torcido e mancando durante todo o caminho; com uma sensação de pânico crescente em meu peito e uma pistola preto-fosca presa na folga da calça. Por alguma razão, passando pela Zona Industrial, sinto vontade de jogá-la na água e tentar esquecer tudo o que ela representa.
Em seguida, me pergunto se a solução não seria me jogar na água, no lugar da pistola.
Não vi Kali em nenhum ponto do caminho.
Não sei nem mesmo se ela conseguiu voltar.
Com o corpo inteiro tremendo por conta do esforço, a dor me perpassando por completo e os músculos da perna repuxados de tanto mancar, passo meu braço pelo console do lado da porta de entrada do Centro de Treinamento. Faço o check-in e entro.
Olho em volta.
A garota está sentada junto de uma parede, no escuro, abraçada aos joelhos. Os fones de ouvido sem fio estão enfiados em suas orelhas. Assim que me vê, ela levanta os olhos e tira os fones.
— Harlan.
Vou até ela.
— O que houve?
— Se tivesse esperado, talvez saberia. — Digo, impregnando cada palavra com o máximo de ironia que posso.
O lábio dela treme.
— Eu perguntei a você se estava realmente disposto a fazer o que estamos fazendo — ela diz, o rosto macio, a voz, dura. — Eu disse a você tudo que ir comigo até lá implicava. Você teve tempo para repensar suas escolhas, e não mudou de ideia. Você sabia desde o começo que poderíamos precisar nos separar para fugir — Kali se apoia na parede e se levanta. — Os mantenedores apareceram e foram atrás de mim. Me seguiram com o meu chip. É melhor que tenhamos nos separado.
— Melhor?
— Você não conseguiria me acompanhar, Harlan — diz ela. — Um não pode atrasar o outro. O que houve com seu pé?
— Eu o torci na queda. — Murmuro.
Tomo um segundo para pensar no que ela acabou de dizer.
— Eu achei que estivéssemos fazendo isso juntos — digo, devagar. — O que você está me dizendo é egoísmo.
— Egoísmo? — Ela pergunta, indignada. — O que estamos fazendo é por você, Harlan. Por ninguém mais.
Ela olha para mim, e me analisa friamente. Me analisa como se nunca tivesse me visto antes.
Se aproxima de súbito e puxa a pistola que estava comigo.
Levanta-a e me põe na mira.
— Se você acha que não estamos fazendo isso juntos, então é melhor acabarmos logo com isso — ela diz, entre dentes, os olhos semicerrados. — Se o que estou fazendo é egoísmo, acho que você prefere que as coisas sigam os seus caminhos já previstos. Acho que você prefere morrer.
Meu coração parece bombear chumbo.
— E quanto àquela mulher? — Pergunto. — Você precisava matá-la, segundo a Teia. Como posso saber que não vai me matar, quando eu zerar o display? Ela estava fazendo apenas o que a Teia mandava fazer. Estava fazendo seu trabalho.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Deuses e Feras
Ciencia FicciónEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...