Capítulo 86

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Não há qualquer comentário sobre a nossa demora quando voltamos ao furgão, com a porta aberta de encontro à do centro de treinamento. O console ao lado da porta de entrada está apagado, mas Kali inconscientemente estica o braço na direção dele.

Então, para e olha para ele, incerta. Depois, entra no furgão.

— Harlan, você precisa estar pronto — ela diz, sentando-se no banco do motorista e olhando para mim. — O que nós vamos fazer não vai ser fácil. Não vai ser nada fácil.

Eu concordo com a cabeça.

O motor do veículo chia, mas as telas que servem de instrumentação digital não se acendem. Eu me sento em um dos bancos. Ellie e Blair me encaram com olhares pesados. Ele segura firme uma sacola preta de plástico sobre o colo, os nós dos dedos brancos. Ellie, por sua vez, parece nervosa, os olhos mirando o exterior e buscando alguma coisa nas ruas.

O furgão começa a andar. As ruas têm gelo por toda parte, e as calçadas estão tomadas por diversos centímetros de neve. A nevasca já não é tão forte, mas os flocos continuam caindo. Kali aciona o limpador de para-brisa e os braços duplos passam pelo vidro, limpando-o. À frente há apenas branco e cinza, as ruas se perdendo no meio do frio da madrugada.

Nós andamos por algumas quadras em completo silêncio, exceto pelo som dos pneus e dos braços do limpador de para-brisa. Há pouco para se ver em frente. Dínamo parece morta, ainda que, com toda certeza, estejamos sendo procurados em todo lugar.

Inconscientemente, olho para meu display.

Mas ele não está lá.

— Kali.

Olho para Ellie, que permanece encarando as ruas escuras.

— Kali — ela chama, outra vez. — Kali, pare aqui.

Ela para. E se vira para a fatalista.

— Eu não posso continuar com isso — diz Ellie. — Você sabe que eu não posso.

Ela continua procurando com os olhos.

— Eu preciso encontrar meu próprio caminho. Preciso sair daqui.

— E o que você pretende?

— Eu vou desaparecer no subúrbio — ela fala, com uma voz calma e baixa, por mais que seus pensamentos pareçam estar em um turbilhão. — Eu preciso fazer isso. Meu display não foi comprometido, eu não fui incluída na quebra do fluxo. Posso participar da atualização, e ninguém vai saber que eu tomei parte nisso. Eu tenho álibis. Eu me certifiquei de cada um deles. Mas preciso sair daqui agora. Agora.

Kali a encara por um longo momento.

— Você tem certeza de que quer encarar isso sozinha? — Pergunta.

— Eu não vou ter de encarar nada — ela retruca. — Eles não vão me pegar. Eu não fiz nada de errado.

Ninguém diz nada. Todos nós sabemos que isso é uma mentira.

A assassina, então, respira fundo, mas concorda com a cabeça.

— Pegue uma pistola, no banco de trás — diz. — Mas, se houver algum problema, duvido que você precise de mais do que uma bala.

Ellie levanta seu pesado casaco e nós vemos uma pistola prateada presa em seu cinto.

— Caso haja algum problema, eu estarei preparada para eles — ela fala, séria. — E, depois do que você fez para mim, pode ter certeza de que, se houver um problema comigo, é melhor você estar preparada, também. Seu nome eu direi antes que peçam.

O lábio inferior de Kali treme por um milésimo de segundo.

— Eu sei. — Diz, por fim.

Ellie faz que sim com a cabeça.

— Obrigado. — Diz a assassina.

A fatalista não responde.

Blair faz um sinal com a cabeça para ela, e puxa com força a porta do furgão, que corre pela lateral e se abre para a noite fria de Dínamo. As luzes dos postes parecem não ser o suficiente para iluminar a escuridão. Ellie para prestes a sair, e olha para nós.

— Tome cuidado. — Ela diz, e aponta para mim.

Também faço um sinal com a cabeça, e ela sai.

A fatalista avança e, umsegundo depois, desaparece na madrugada.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora