Capítulo 29

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Um dia depois. Refeitório da Kali.


Desta vez não estou aqui pelo meu alvo. Passo pela bancada e deixo que os laboradores do outro lado sirvam comida na minha bandeja. Depois, dou uma olhada no lugar, com apenas três quartos de sua capacidade utilizados. Kali está sentada sozinha, como de costume, perto da porta de saída. A garota com quem quero conversar, no entanto, está do outro lado do refeitório, sentada com outras três garotas. Uma delas é Ellie, uma das quatro aliadas de meu par.

Passo com dificuldade pelos corredores formados pelas mesas e cadeiras, desviando das pessoas que se levantam e caminham no sentido oposto.

Paro junto da mesa das quatro mulheres. E todas elas me olham.

— Eu sabia que você ia voltar. — Diz a garota de cabelos vermelhos, com um sorriso muito branco por trás dos lábios escarlate.

Apenas concordo com a cabeça. Ellie me olha, curiosa. As outras garotas me examinam com olhares críticos.

— Quero contratar você. — Digo, sentindo-me ridículo por estar segurando a bandeja cheia de comida. Por alguma razão, tenho vontade de me sentar na primeira mesa vazia que aparecer. Mas a mais próxima fica a duas fileiras de distância.

A jovem faz um gesto para a mesa cheia.

— Sinto muito. Vai precisar me procurar no mercado político. Não faço negócios no horário do almoço — diz ela. — Tem alguns horários que devemos preservar. Estar no refeitório com aliados é um deles.

— Não me pareceu que você estivesse respeitando isso quando me vendeu informações que eu ia descobrir de qualquer jeito — respondo, incapaz de disfarçar a ironia na voz. — No dia em que eu infelizmente caí nos seus truques de difamadora.

As quatro continuam me olhando, e sinto meu rosto começar a arder.

Então Lenina bate de leve com as duas mãos nos lados da bandeja e se levanta.

— Bem, não vou deixar passar a oportunidade — diz ela, sorrindo para as outras e lhes lançando um olhar incisivo. — Vamos. — Diz para mim.

Ela pega a bandeja e eu a acompanho para uma mesa mais distante e vazia, onde teremos um pouco mais de privacidade. Ou, pelo menos, é o que eu acho.

Sentamos um de frente para o outro. Embora tenha comida na minha bandeja, não sinto vontade de comê-la.

Ela me olha, as pontas dos dedos unidas sobre a bandeja dela.

— Espero que você tenha conseguido roubar a sua fatalista. — Diz ela.

Solto um suspiro.

— O que aconteceu?

— Não importa — resmungo. — O que aconteceu é problema meu. Estou aqui apenas porque preciso de seus serviços, e é só a respeito disso que vamos conversar.

— Kali é o meu serviço, não é? — Pergunta ela. — Estou apenas tentando ajudar.

Olho para ela, um canto de sua boca se erguendo em um meio-sorriso. Ela sabe exatamente porque estou aqui.

— Sim. Kali é seu serviço. — Admito.

A garota concorda com a cabeça, muito de leve. As mechas rubras de seu cabelo se movimentam para frente e para trás com a cabeça. Ela pega seus talheres e recomeça a comer. Sem tirar os olhos dela, pego os meus e faço o mesmo.

— O que você precisa saber? — Ela pergunta.

— Tudo.

Levanto os olhos para encontrar os dela.

— Preciso saber tudo.

Lenina segura o garfo com um dedo só, como se fosse deixá-lo cair na bandeja.

— Imagino que você saiba que o preço de uma investigação completa não seja muito baixo — diz, gesticulando com a mão, o garfo indo para lá e para cá. — Ainda mais tratando-se de Kali. Quero dizer, devido ao fato de seu display estar bloqueado—

— Não está mais.

A garota levanta uma de suas sobrancelhas.

— Da última vez que você me contratou, lembro que disse que ela o havia bloqueado.

A difamadora olha na direção da rival, bastante longe, e dá uma risada leve.

— Acho que eu jamais vou conseguir entender ela — sibila, entre dentes. — Duvido que ela mesma consiga se entender. Você não tem ideia do caos que se passa dentro daquela cabeça — rapidamente ela larga o garfo em seu lugar na bandeja e dá um rápido sorriso. — Ainda assim, tenho certeza de que sou a pessoa mais indicada para... tentar entendê-la.

Não falo nada, apenas observo a garota à minha frente. Ela lança, mais de uma vez, o olhar na direção de meu alvo, e não sei direito que tipo de olhar é esse.

Então, volta a me encarar. Sempre que o faz, dá um pequeno sorriso, como que tentando ser simpática. Ou não.

— Creio que o seu interesse nela seja não só por ela ser seu alvo, mas, também, por vocês serem pares — diz, e, na voz dela, percebe-se uma ponta de escárnio: — Pares únicos.

Balanço a cabeça, lentamente, enquanto tomo um gole de uma bebida sintetizada sem gosto.

— Eu apenas quero entendê-la.

Por alguma razão, a mercadora parece descontente com o fato de eu tê-la contraposto. Ela corta um pedaço de carne e o leva delicadamente à boca, mastigando-o calmamente.

— Ainda que o display dela já não esteja mais bloqueado, o valor em créditos será, como é de se esperar, relativamente alto — diz ela, me olhando com o canto do olho. — Quanto você pretende gastar?

Dou de ombros.

— Diga seu preço.

— Trezentos e cinquenta créditos para cada informação nova — diz ela, e eu prendo a respiração no mesmo instante. — Sem concessões e com a informação entregue apenas no momento do pagamento. A regra é fazer as trocas de informações prioritariamente no mercado político, embora eu possa fazer alguma exceção. Tudo precisa ser formalizado para ter validade. Inclusive nosso contrato de prestação de serviços.

Engulo em seco.

— De acordo?

Concordo com a cabeça.

— Você terá créditos o bastante para pagar por ela? — Lenina faz um sinal com a cabeça na direção da fatalista. Esta parece completamente imersa em seus próprios pensamentos, mal comendo o que está em sua bandeja.

Volto a encarar a mercadora.

— Sim.

Por ela, sim.    

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora