PARTE TRÊS
PASSAGEM
Duas horas mais tarde. Dormitório.
Encaro o teto.
De certa maneira estou surdo, e a única coisa que consigo ouvir são as batidas de meu coração, ritmadas, mas imprecisas. Como se houvesse algo de errado com elas. Como se, a qualquer momento, meu coração pudesse parar, eu deixasse de respirar e restasse apenas um corpo deitado sob os lençóis brancos, no colchão duro da beliche.
É quase como se eu já estivesse morto.
Jayden e Mael demoram, mas finalmente chegam. Incapaz de dormir, olho para eles, logo abaixo.
— Onde vocês estavam? — Pergunto, minha voz saindo rasgada da garganta.
Os dois olham para mim.
— Mael teve que passar no QG dos eruditos — diz Jayden. — Eu fui com ele.
Ele me encara profundamente.
— Aconteceu alguma coisa? — Ele pergunta.
— Sim.
Ele se senta em seu colchão, olhando para mim. Põe debaixo da cama os chinelos que usava até então e cruza as pernas.
— O que houve?
— Foi logo depois de vocês saírem da feira — respondo, sentindo meus olhos pesados tanto pelo sono quanto pelo cansaço físico e mental. — A difamadora veio atrás de mim. Disse que tinha descoberto uma coisa, e não cobrou créditos por isso. Ela disse que tinha pedido a um hacker o acesso ao display da Kali e que tinha encontrado a própria assinatura na galeria de alvos dela.
Mael dá de ombros.
— O que não é surpresa — diz ele. — Pelo que eu entendi, essa difamadora está na galeria de rivalidade da sua garota. Como ela é uma fatalista, é de se esperar que rivais sejam, também, alvos dela.
Fico calado por alguns instantes.
— Mas eu não sou rival dela. — Murmuro.
Ficamos calados por alguns segundos, então Jayden leva a mão esquerda à cabeça.
— Merda. — Ele diz.
Segue-se silêncio, até mesmo por parte de Mael.
— Você é um alvo dela. — Resmunga Jayden.
— Sim. — Concordo.
Jayden abaixa a mão, deixando-a pousada no colo. Seu namorado permanece a seu lado, em pé.
— Eu vi que a Kali estava por perto, quando a difamadora me disse que era alvo dela. Então eu decidi perguntar a ela o porquê de tudo isso, o porquê de estar me seguindo, tendo dito que queria se manter distante — digo, desolado. — Eu fui atrás dela e foi ela mesma quem me disse que sou seu alvo.
— O que ela disse sobre isso?
— Nada. Não disse nada — resmungo. — Mas eu perguntei a ela se... se me amava.
Mael lança um olhar acusador na minha direção.
— É impossível que ela o ame — diz ele. — Vocês são pares, e apenas isso. Devem efetuar seu pareamento com uma relação sexual. A correspondência entre vocês não passa de fórmulas químicas, feromônios e cálculos matemáticos.
— Qual foi a resposta dela? — Pergunta Jayden, ignorando completamente o que o outro disse.
— Disse que isso não é verdade — respondo com a voz baixa ainda saindo rasgada, como se cada palavra arranhasse a parede da minha garganta e levasse, consigo, um pouco dela e de mim. — E que nós deveríamos ficar longe, um do outro.
Mael sobe em sua beliche. Jayden concorda com a cabeça.
— Acho que isso é realmente a melhor coisa que vocês podem fazer, agora. Quanto mais tempo puderem evitar que as coisas aconteçam, mais tempo você vai ter. — Diz.
— Está dizendo para ele não cumprir com as suas conquistas previstas no display? — Pergunta o erudito, parando no meio do caminho da sua subida. — Sabe que isso é proibido, não sabe? E que qualquer pessoa que se recusar a cumprir com seu display ou atrasar um alvo ou conquista está sujeito a ser convocado para ir à CMT prestar esclarecimentos?
Ele sobe o restante e senta em sua cama.
— E, na CMT, a primeira coisa que os mantenedores farão é obrigá-lo a concluir o que você não queria fazer — dá de ombros. — O que acabaria dando no mesmo. Não se pode protelar um dever para com a Teia.
— Mas você ainda tem outros alvos. — Jayden insiste para mim, e sua expressão me pede que eu tenha.
Faço que sim com a cabeça, mas muito de leve, e muito devagar.
— Poucos. Quase nada.
— Bem, sim. Nós estávamos falando sobre isso na cerimônia de inserção da semana passada — diz o erudito. — É claro que não teriam simplesmente surgido novos alvos no display dele.
Jayden me olha.
— Você é um curinga.
— Não. Eu não sou um curinga. — Murmuro, quase sussurro.
Ficamos quietos. Mael se arruma em sua cama e Jayden vai lentamente fazendo o mesmo. Eu volto a encarar o teto.
— Será mesmo impossível manter-se inserido, sem morrer, não fazendo nada por algum tempo? — Pergunto. — Deve ter gente que consegue se safar.
— Mas são caçados dia e noite pelos mantenedores — diz Mael, virando-se no colchão. — Não é completamente impossível, mas é ilegal. Todo mundo sabe disso, e você também sabe. Sempre soube. Se fosse diferente, não teria necessidade nenhuma de irmos a cada semana à Praça Atômica para a cerimônia.
Eu me viro também, para olhar para os dois de novo.
— Será que eu só me tornei um alvo dela depois da atualização? — Questiono. — Quero dizer... será que, em algum momento, eu fui um curinga? Talvez eu esteja sendo punido, também, junto dela. Talvez as consequências do que ela fez e faz estejam repercutindo em mim, também.
— Isso é irrelevante. O que importa é o presente — diz Mael, enquanto Jayden parece refletir. — Se o fato de que você deve ter o arco fechado por seu par está em seu display e na projeção da Teia atual, então é isso que vai acontecer. É o correto.
Jayden olha para mim, mas nada diz. Não há nada a dizer.
Puxo os lençóis um pouco mais para cima, me tapando até o pescoço. Apesar da calefação, o tempo frio começa a se fazer cada vez mais presente. É a troca de estações.
— Parece que a Kali está tentando uma atualização.
Os dois giram o corpo na minha direção ao mesmo tempo.
— O quê?
— Na ocasião em que eu a tirei da CMT — digo. —, ela estava falando com Fenrir Roth. O homem é um artífice, supostamente um rebelde. O que ela tentou descobrir, com ele, foi se era possível conseguir uma atualização para reverter o que a anterior ocasionou — continuo. Prefiro não dizer que, entre as coisas que ela gostaria de mudar encontra-se o fato de eu ser seu par. — A Kali quer se livrar de seus alvos.
Mael finalmente fica apenas calado.
— Seria possível? — Pergunta Jayden, os olhos se iluminando de leve.
— Eu não sei. Mas, talvez, valha mais a pena do que simplesmente aceitar o destino.
Ele concorda.
Volto a olhar para o teto.
Agora, sim, não há maisnada a dizer.
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Deuses e Feras
Ciencia FicciónEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...