Capítulo 68

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Noite. Rua.


O frio parece mais gelado do que nunca quando saímos do depósito de mercadores, mesmo vestindo pesados casacos e puxando as golas para que protejam nossas nucas. O ar que vem das montanhas do lado de fora dos muros da cidade é um vento que corta como navalha.

— Eu vou precisar que você hackeie o console do dormitório dela. — Digo, em voz baixa.

Ainda que racionalmente haja certeza para mim, há algo dentro de meu peito que parece ir na direção contrária.

— Você ainda sabe fazer isso, não sabe? — Pergunto.

— É claro. Esse tipo de coisa não se esquece. — Diz Jayden, também enfiado em seu casaco, abraçando a si mesmo.

Concordo.

Conforme chega o inverno, as ruas de Dínamo parecem ficar um pouco mais vazias, ainda que continuem cheias de vida. Os outdoors seguem lançando suas luzes coloridas pelo chão, iluminando as paredes dos prédios. Os postes de lâmpadas brancas ainda clareiam os caminhos, mas as sombras nos cantos dos prédios e nos becos ainda estão lá. E é lá que a atividade noturna é maior.

— Você pegou clorofórmio? — Pergunta ele.

— Não. Não quero envenenar ela.

— E o que pretende?

— Asfixiar até fazê-la desmaiar. — Digo, sentindo um arrepio percorrer minha espinha.

— Certo.

Damos mais alguns passos ruidosos pela rua. Uma nova rajada de vento passa pela ruela.

— Você sabe que, depois disso... não há mais volta, certo? — Diz Jayden, olhando para mim, avaliando-me.

— Sim. Você já me disse isso muito tempo atrás — resmungo. — E, desde então, eu já sei que meu destino está traçado e é impossível fugir dele.

Depois de muito tempo chegamos à frente do dormitório de Kali.

Jayden logo se ajoelha à frente do console e pluga, nele, uma unidade de armazenamento móvel, que roda algum tipo de aplicativo capaz de travar momentaneamente o computador. Ele digita diversos códigos diferentes e, pouco depois, a porta se destranca e abre sozinha.

— Quer que eu vá, também?

— Não — digo. — Eu preciso fazer isso sozinho.

Ele concorda e se afasta, indo até o outro lado da rua e ficando lá para aguardar minha volta.

Eu também aguardo, na frente da porta aberta.

Um caminhão de lixo se aproxima e para em frente a um contêiner. Seus poderosos faróis lançam luzes fortes na direção do interior do dormitório, iluminando-o parcialmente. Eu me esgueiro pela porta aberta e vasculho pela semiescuridão.

Algumas das garotas no interior se viram para o outro lado, colocando os braços por sobre os olhos, tentando se proteger da luz que os fere. Poucas olham em minha direção, e as que o fazem parecem pouco se importar com minha presença. Minhas roupas pretas me camuflam no escuro, e eu ando sem fazer barulho.

Uma nesga de luz permite que eu localize cabelos negros cascateando por um travesseiro branco.

Avanço para a garota.

Paro em frente à cama dela, sentindo como se essa fosse a primeira vez em que realmente tenho o controle do que está acontecendo.

Eu me agacho.

A garota deitada na cama não parece a mesma que cheirou nectarina e me obrigou a matar uma mulher. Não parece a garota que me deixou para trás em uma fuga desesperada do Hospital Geral, com o tornozelo torcido. Não parece a mesma que foi estuprada em um beco e matou seu estuprador. Não parece uma fatalista, uma assassina.

Parece apenas uma garota dormindo.

As pálpebras fechadas têm cílios longos e naturalmente muito escuros. As pontas de dentro de suas pálpebras são um pouco puxadas para baixo, o que torna seus olhos aquilinos. O nariz é fino. Passando por sobre ele e por baixo de seus olhos há minúsculas sardas que eu nunca tinha percebido. Sua boca é rosada, macia. As bochechas são coradas. Algumas mechas de seu cabelo repousam suavemente sobre sua face.

O caminhão de lixo silva do lado de fora e a luz termina.

Ao mesmo tempo, ela abre os olhos.

Eu respiro fundo, sem saber o que fazer.

Kali me olha como se fosse natural que eu estivesse à sua frente, em seu dormitório, no meio da noite.

Busco pelo meu bolso. Tiro um lenço de dentro dele.

Antes que ela seja capaz de falar qualquer coisa, eu a empurro e ponho de costas sobre a cama. Pulo sobre ela, e todo o beliche se move junto. A garota abre a boca, mas eu enfio o lenço dentro dela e puxo seu travesseiro de debaixo de sua cabeça.

E o pressiono contra seu rosto.

Ela se debate, e seus braços me acertam.

A fatalista me soca com força, mexe as pernas, tenta gritar.

De sua boca tapada saem apenas urros surdos.

A esse ponto, todo o entorno já acordou.

E todas as garotas à volta apenas me observam, de olhos arregalados.

Os socos dela diminuem de intensidade aos poucos.

Ela dá um último e para. A mão cai morta a seu lado.

Tiro o travesseiro de sobre seu rosto e o jogo no chão.

Kali desmaiou.

Meu corpo inteiro treme enquanto eu tento segurar o colar que envolve seu pescoço. Meus dedos se enrolam um no outro e eu sou incapaz de tirá-lo de dentro da gola de sua roupa.

Agarro a gola e a puxo e rasgo.

O rasgo desce até o meio de seu peito e desvela metade de um de seus seios, e o pingente de aranha.

Eu o seguro em minha mão e o arranco do pescoço dela com toda a minha força.

O fecho de ímã se desprende dela.

E, finalmente – finalmente –, o colar está em minhas mãos.

O colar que começou tudo isso.

Todo o dormitório parece ter prendido a respiração, os olhos voltados para mim.

No meu antebraço esquerdo,meu display brilha minha últimaconquista.    

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora