Um pouco mais tarde. Na porta do servidor.
O console ao lado da porta se acende quando me aproximo. Há uma câmera instalada no canto do prédio que segue meus movimentos. Provavelmente um circuito fechado que a hacker de Kali usa para se proteger de ameaças externas. Dou uma olhada na direção da moto, estacionada na rua, e passo meu display no escâner.
— O que você quer, garoto?
— Preciso falar com você.
— A resposta é não, a não ser que você tenha um bom motivo.
O pacote de nectarina que roubei do posto avançado tinha quatro menores no interior, e eu levanto um deles na direção da câmera.
— Já vi o pagamento, mas ainda não entendi o motivo.
— A Kali está presa.
— Eu sei.
A voz sai metálica, quase robótica. Ela sabe e não fez nada a respeito?
— Eu vou tirar ela de lá. E preciso da sua ajuda.
Um momento de silêncio, exceto por dedos batendo no teclado virtual.
— Ela sabe se cuidar. Porque acha que ela precisa da sua ajuda?
Ergo uma das sobrancelhas. Continuo olhando para a câmera.
— O que a leva a achar que ela não precisa?
Mais alguns instantes de silêncio, depois a trava da porta faz um clique alto.
Puxo a porta e fecho-a atrás de mim quando entro. Passo pelos corredores formados pelas prateleiras enquanto desvio dos diversos cabos negros que caem por elas.
— Só pra ficar claro, estou fazendo isso pela nectarina — diz Ceres, enquanto usa a ponta dos pés para girar a cadeira na minha direção. Ela coloca as mechas oleosas do cabelo atrás da orelha e limpa o canto do olho. — O que você quer?
— Não posso deixar a Kali presa.
Ceres respira fundo.
— Você nem ao menos conhece ela.
— E você, conhece?
O rosto dela se contorce em um lapso de raiva, mas em seguida já desapareceu. Sua voz, no entanto, sai afiada.
— Com certeza conheço mais do que você, pirralho — diz, os olhos semicerrados no rosto grande. — Tenho certeza de que ela está bem.
— Ela é meu par — respondo. — Não posso deixá-la presa.
A hacker ri por um instante apenas.
— Então ela agora deixou de ser seu alvo e passou a ser apenas seu par? — Ela grunhe, ainda com um sorriso no rosto. — Você sabe que ser o par de alguém não significa absolutamente nada, não sabe?
Permaneço quieto e ela fica séria novamente.
— Certo, passe pra cá. Do que você precisa? — Ela diz, agarrando o pacote de droga da minha mão. Ela verifica o conteúdo, como da última vez, e o guarda no interior da terceira gaveta.
— Preciso que um hacker quebre os firewalls da CMT e abra o caminho para eu entrar. As barreiras físicas.
— É uma péssima ideia — resmunga ela, cruzando os braços. — Se tentar entrar, será alvejado. Depois, seria preso, e então teríamos dois imbecis dentro da CMT; um deles à toa. E aí vocês dois iriam para o Núcleo de Reprogramação e Ajuste, e provavelmente deixariam de ser pares. Porque é o que eles fazem quando alguém é muito obcecado por outra pessoa. Quando não... — Ela parece pensar a respeito. — Quando não fazem coisas piores.
Ela faz um sinal na minha direção. Sinto minhas bochechas arderem.
— Eu não sou obcecado por ela.
— Certo. — Ela dá um sorriso sujo.
Respiro fundo antes de continuar.
— Se não posso entrar lá, o que posso fazer?
— Deixe que ela saia. É fácil abrir as portas da CMT. Difícil vai ser ela conseguir sair de lá, mas ela vai dar um jeito — Ceres não consegue esconder a ponta de alguma coisa: talvez orgulho, talvez paixão, que nutre pela fatalista. — De qualquer maneira, pode ser que ela queira estar lá dentro. Eu nunca sei o que está se passando na cabeça dela.
— Pode ser que ela não consiga pedir ajuda.
— Talvez.
Fico calado.
— O que fazemos, então?
— O que você faz — ela aponta um dedo grosso na minha direção. — Eu vou ficar aqui e fazer a mágica. Você vai até a porta da CMT e espera ela sair. E, quando ela o fizer, você vai voltar para o subúrbio o mais rápido que puder com aquela coisa. — Faz um sinal na direção de um monitor, a imagem da câmera mostrando a moto, estacionada na rua.
Ceres empurra a cadeira até um pequeno armário e abre uma das gavetas. Pega, do fundo, um adesivo verde, e o joga em minha direção. Eu o agarro no ar.
— O que é isso?
— Nada de mais. Eu chamo de "campainha". Na verdade, é um dispositivo de rastreamento e alarme de circuito fechado e uso único.
— Melhor chamar de "campainha". Para que serve?
— Serve de aviso, um botão de pânico — diz ela. — Quando estiver posicionado, você aperta. Serve pra não termos problemas de sincronia, entendeu? Você aperta e descarta, porque só funciona uma vez. Vai aparecer o sinal no meu computador e eu vou fazer o hack. Aí é só esperar a Kali sair da CMT e fugir com ela. O que não é tão fácil quanto falar.
Colo o adesivo no braço, perto do dermatrodo.
— Boa sorte, garoto. — Ela diz, quando estou saindo.
— Espero não precisar desorte. — Digo.
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Deuses e Feras
Ficção CientíficaEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...