Capítulo 92

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Nós passamos quase uma hora sem falar uma palavra sequer.

Em completo silêncio.

A presença um do outro nos constrange, e eu sinto minhas cordas vocais travadas, impossibilitadas de pronunciar qualquer palavra que seja. A assassina, por sua vez, olha para fora da enorme janela. Seus olhos parecem ignorar toda a vista de Dínamo que se desvela à frente. Eles se fixam no horizonte recortado das montanhas e no que elas ainda devem significar para si.

Apenas respiro fundo por muito tempo, pensando.

— O que vai acontecer, agora? — Pergunta Kali, subitamente.

Uma sensação de estranheza me toma.

Eu franzo as sobrancelhas para ela. Essa garota sempre foi minha guia. Quando nada parecia correto ou quando os obstáculos no caminho pareciam intransponíveis, ela possuía a solução. Quando as opções se tornavam nulas, ela encontrava uma saída pela tangente. Quando todas as chances estavam contra nós e tudo o que fazíamos, era ela quem suportava todo o peso, toda a pressão. Ela era a base de tudo o que havíamos construído. Sem sua existência, tudo teria vindo abaixo muito antes.

Mas agora ela faz a mim a pergunta que eu sempre fiz a ela.

Kali não sabe o que fazer.

— Eu... não sei. — Murmuro uma resposta.

Ela olha para o próprio colo e nada mais diz.

Quinze minutos mais tarde, as portas duplas da sala 101 se abrem.

Ouvimos o som de passos se aproximando atrás de nós, e não há dúvidas de quem são as pessoas responsáveis por eles. Dimitri O'Neil e Silas Markham andam até a nossa frente, obstruindo a visão panorâmica da cidade. O'Neil volta-se para mim.

— Seja bem-vindo de volta.

Um sorriso sádico surge em seus lábios, e seus olhos brilham de leve.

— Gostaria de informá-los, antes de qualquer outro procedimento, que sua captura foi realizada em um momento anterior à atualização — seus olhos pousam em mim e em Kali, em seguida. — A atualização tomou proporções nunca antes imaginadas. Levamos em consideração o assassinato ilegal de Lenina Crenshaw; o não-fechamento de arco de alguém com o display zerado — ele olha para mim. —; a explosão criminosa de um apartamento residencial no centro de Dínamo e morte de inúmeros habitantes do centro da cidade em decorrência disso; e a morte antecipada de um número considerável de mantenedores no posto de controle Leste no limite da cidade.

Markham permanece em silêncio, as mãos segurando uma à outra às suas costas. O'Neil, por outro lado, anda à nossa frente, encarando vez um, vez outro.

— Como efeito borboleta, outros fatores também foram levados em consideração como consequência de seus atos. O roubo não-previsto de artigos hospitalares no Hospital Geral; a utilização indevida de passes de mantenedores, tanto na própria CMT quanto em postos avançados; a criação de um canal alternativo de comunicação e consequente inutilização de um importante servidor da cidade—

— Onde estão Ceres e Ellie? — Pergunta Kali, interrompendo-o.

O sorriso no rosto dele se amplia um pouco mais.

— Suas cúmplices já receberam suas devidas punições.

— E quais são?

— Essa é uma informação sigilosa. — Ele diz.

Kali lança a ele um olhar que, antes do que aconteceu, poderia perfurá-lo de um lado a outro. Agora, no entanto, ela já não parece mais ter a mesma força. E ele mantém o olhar até que ela desvia o seu. Eu jamais imaginaria que o olhar de Kali poderia ser derrotado, mas ela já não é mais a mesma pessoa.

Eles a dobraram.

O'Neil anda à nossa frente, por alguns instantes. Então para, outra vez.

— O que vocês pretendiam, no topo da muralha? — Pergunta ele, falando as palavras em um tom de voz alto e muito claro. — Era claro que, nas circunstâncias em que se encontravam, as balas utilizadas contra vocês não seriam de borracha. Foram avisados de que não deveriam fazer movimentos bruscos. Mesmo assim, tentaram fugir, e falharam. E, nisso, arriscaram-se completamente, e perderam de maneira irreversível a capacidade de andar.

Markham levanta a mão na direção do mantenedor, pedindo licença para falar.

— Chega um momento, na rebeldia, em que percebe-se a verdade a respeito da sociedade em que estamos inseridos — diz o orador das cerimônias. — Percebe-se a onipotência e onipresença da Teia e a pequenez dos indivíduos perante a sua grandiosidade. Neste ponto, praticamente perde-se a noção de perigo e, também, o senso de preservação e sobrevivência. Tomam-se decisões repentinas e inesperadas, sem calcular as consequências resultantes de tais atos. Algo incoerente do ponto de vista racional. Sacrificar a segurança em prol de uma individualidade, de uma subjetividade. Sacrificar a própria segurança, a própria vida em prol de um ideal.

Ele não olha nem para mim, nem para Kali.

Parece, por outro lado, estar falando da mesma maneira como fala na Praça Atômica. Parece falar para a sala.

— O ideal de liberdade é o mais difundido entre os rebeldes da Teia — ele diz. — Entre os rebeldes previstos e os rebeldes verdadeiros, sempre surge a noção de liberdade e as subsequentes consequências desta. Sobre a muralha, estes dois indivíduos não pretendiam fugir. Pretendiam morrer. Morrer em nome da liberdade, morrer, simbolicamente, livres; saltando para o abismo do lado de fora do muro. A libertação pela morte se contrapõe radicalmente à morte no interior dos muros da cidade. Esta seria a morte como forma de confirmação de escravidão e servidão à Teia. Ignora-se, na mente destes rebeldes, a compreensão de que a morte existe em uma única forma, e não há qualquer valor simbólico no suicídio, dentro ou fora da Teia. Nos dois casos apresentados, a morte existe unicamente pela morte; o fim da vida pelo fim da vida.

— Pare de falar assim. — Diz Kali, olhando para ele, falando entre dentes.

O homem olha para ela, com desdém.

— A morte não existe apenas pela morte — ela diz. — Existe a morte como escravidão, a morte como libertação. A morte de Blair e Fenrir, como um protesto violento à existência da Teia e os seus métodos de controle e vigilância. E, caso eu e Harlan tivéssemos morrido, teríamos morrido livres. Teríamos morrido fora da Teia.

O orador olha para ela, e poderia sorrir, como faria o mantenedor.

Mas ele apenas a olha seriamente, por um longo segundo.

— Você sabe o que existe do outro lado desta cordilheira de montanhas? — Pergunta.

A garota mantém o olhar por mais algum tempo. Depois, volta a desviá-lo.

— A Norte, Sul, Leste e Oeste existem outras cidades da Teia. Depois da cordilheira, subindo o rio, descendo o rio, há cidades que funcionam exatamente da mesma maneira que Dínamo. Cidades que sofrem com os mesmos problemas e que os solucionam das mesmas formas. Vocês não são os primeiros, nem os últimos rebeldes que creem ser mais poderosos que a Teia — diz Markham. — A Teia espalha-se por todo o mundo, e não há lugar no qual vocês estejam livres dela. Ela é onipresente, é onipotente. Não há para onde fugir, a não ser para outra cidade da Teia, e, depois dela, para outra, e assim por diante.

Ele olha para os muros e o limite da cidade.

— Caso morressem fora dos muros, morreriam tão escravos quanto do lado de dentro.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora