Capítulo 34

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Uma semana e meia depois. Mercado político.


Estou de volta à sala privativa, junto de Lenina. A expressão dela não mostra nenhum sorriso. Seus olhos estão fundos, mas não como se não tivesse dormido; ela apenas parece soturna, sombria. Fica de braços cruzados durante todo o tempo, sem falar muito, esperando para que nos trancássemos na sala com porta de vidro.

Antes de falar qualquer coisa, a garota acena na direção do console.

Eu passo meu braço e volto a olhar para ela.

— Falei com a Sybil.

O que não é exatamente algo de se surpreender. Surpreendente é o fato de a torturadora de Kali aparecer em sua galeria de alianças. Ela fornecer informações a Lenina, por outro lado, é exatamente o que eu esperaria de uma pessoa que trabalha para a Teia ferindo pessoas física e psicologicamente por uma razão que, para mim, ainda é desconhecida.

— Eu descobri porque a Kali matou Morfeu antes da hora.

— Vingança, você me disse.

— Sim.

Lenina descruza os braços e os põe sobre a mesa.

— Kali quis se vingar dele porque ele a estuprou.

De certa maneira, agora parece completamente irrelevante estar sentado nesse banco, conversando com essa garota e tentando compreender razões pelas quais algo saiu do controle da Teia. É ridículo. O ar torna-se mais pesado e difícil de respirar; algo sólido parece ter se alojado sobre os meus ombros, empurrando-me para baixo, contra o estofado, me afundando no banco mais e mais. Meus dedos e mãos formigam, como se não pertencessem a mim. Subitamente, parece que sei o motivo porque os olhos de Lenina estão fundos em seu rosto. Olho para minhas mãos e vejo que elas tremem de leve.

— Sybil me disse como foi que aconteceu. Você quer saber?

Olho para ela, confuso apenas por um instante.

— Sim. — Digo.

Lenina concorda, e as próprias mãos dela estão tremendo um pouco enquanto ela entrelaça os dedos. Lembro, imediatamente, que há uma razão para ela estar abalada. Kali era sua amiga até pouco tempo atrás.

— Kali tinha ido a uma festa em uma noite e estava voltando sozinha — diz Lenina. — Ela sempre foi assim. Sempre disse que não precisava de ninguém, que não precisava de escolta ou qualquer coisa do tipo. Que estava preparada para o que quer que fosse encontrar no caminho. Mas, dessa vez, ela não estava. Morfeu a encontrou em um beco.

Em minha mente surge a visão do beco em que eu perseguia Morfeu. O beco escuro e misterioso no qual ele se meteu e através do qual eu o segui. E como Kali estava lá, escondida nas sombras, invisível a meus olhos até que ela quisesse ser vista.

— Ele a abordou com violência. Disse que ela era seu alvo, mas que ele faria parecer que eram pares — o rosto de Lenina, agora, não mostra qualquer tipo de emoção. — Ele era um sádico. Estava em seu display que deveria estuprá-la, e ele estava lá para isso.

— E ela não fez nada?

— Kali tentou fugir. Mas não conseguiu. Morfeu tentou segurá-la, e ela se debateu e bateu nele, também. Ele se irritou e a esfaqueou.

— A faca que eu precisava roubar — murmuro. — A faca que ela comprou na feira.

A difamadora concorda com a cabeça.

— Ele a acertou na barriga.

Morfeu, quando a colocou no chão no dia de sua morte, puxou a blusa dela para cima e tocou na cicatriz em sua barriga. Ela ficou furiosa.

— Kali caiu no chão, sangrando e muito ferida. Morfeu a puxou para trás de um contêiner de lixo e amordaçou-a, para que não gritasse. Amarrou seus pulsos e pés e a estuprou, depois de esfaqueá-la. A cada vez que ele investia contra ela, mais um pouco de sangue saía do corte. Quando ele finalmente terminou, ela já estava inconsciente.

Os olhos da mercadora estão molhados, mas ela não se permite chorar.

— Ela quase morreu, naquela noite.

Olho para minhas mãos, incomodado. É certo sentir algo como o que estou sentindo por alguém tão distante de mim? Alguém que é meu alvo e meu par, mas se recusa a admitir qualquer das duas coisas?

— Não demorou muito para que os curandeiros aparecessem. Ela já tinha sido pré-selecionada para a seleção de cura, e eles sabiam exatamente onde e quando buscá-la. Levaram-na para o Hospital Geral, mas foi quase tarde demais. Ela perdeu uma quantidade muito grande de sangue. Se ela tivesse ficado um mínimo de tempo a mais quase-morta atrás daquele contêiner, não estaríamos aqui hoje.

Fico calado por alguns segundos.

— Você não sabia disso? — Pergunto. — Na época, vocês eram amigas.

— Ela não me contou. Não contou a Ellie, também. Sobre o ferimento e o tempo que passou no Hospital, disse que havia sido um alvo que havia revidado.

Respiro fundo, pensando a respeito.

— Isso ainda não justifica o fato de ela ter matado Morfeu antes do tempo — digo, minha voz treme da mesma forma que minhas mãos. — Ela poderia ter se vingado depois de ele zerar o display.

Lenina nega com a cabeça.

— Ela não poderia fazer isso. Ela não queria fazer isso. Ela não queria apenas fechar seu arco. Queria assassiná-lo — diz. — Kali sabia que se fizesse isso, seria punida, mas, também, estaria desestabilizando a Teia. Quando ela descobriu que era um alvo de Morfeu, que era a intenção da Teia que o estupro acontecesse... ela decidiu que se vingaria tanto dele quanto dela. Da Teia.

Eu concordo, quieto. Apoio a cabeça na mão esquerda, meus pensamentos em um turbilhão, embora, agora, as coisas tenham finalmente começado a ficar claras. Ainda assim, o ar fica cada vez mais pesado, assim como a solidez que se instalou sobre meus ombros.

Kali tinha uma razão paramatá-lo. Uma boa razão.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora