Mais tarde. Na rua.
Kali sai do centro de treinamento no mesmo horário em que seus treinos sempre terminam. Sybil sai antes dela, sem olhar para os lados, e desaparece no meio das pessoas da rua.
— Como foi? — Pergunto.
A garota me olha dos pés à cabeça com uma expressão estranha na face.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que... — subitamente me ocorre o quão estranho é admitir em voz alta que eu a espionei por um tempo considerável e sei a respeito das inúmeras vezes em que a tutora dela a puniu. — Bem, ela é uma torturadora, certo?
— Sim.
— Ela puniu você?
Kali me olha por algum tempo.
— Não importa. Vamos.
Puxo a gola de meu casaco e tento me proteger do vento.
— Aonde vamos?
— Ao servidor.
— E o que vamos fazer lá?
A garota parece andar um passo à frente de mim, ainda que a meu lado. É difícil acompanhá-la.
— Acho que talvez a nossa solução não seja esperar que surja uma solução, mas agir baseados no que já sabemos — parece que nunca a vi andando. Sua postura é muito ereta, e ela não parece sentir o mesmo frio que eu, ainda que tenha vestido um casaco grosso ao sair do centro de treinamento. — E eu acho que talvez o grupo de subsistores ao qual Sybil se referiu pode ter seguido o caminho certo.
— Ou seja, acabar voltando ao mesmo lugar do qual vieram? — Pergunto com uma ponta involuntária de ironia na voz.
— Não — ela responde, um pouco ríspida. — Acho que estavam certos em tentar tratar do problema em sua raiz, não no meio ou no fim. E nós dois sabemos que nosso problema começou com a atualização, no galpão de atualização, com um programador. Talvez o caminho certo seja encontrarmos um programador e fazê-lo atualizar nossos displays à força.
Olho para ela.
— À força.
— Você acha mesmo que um programador faria isso se simplesmente pedirmos a ele? — Ela não responde ao meu olhar.
Resmungo qualquer coisa.
— E como vamos levá-lo até um dos galpões? — Questiono.
— Nenhum programador iria até um dos galpões por vontade própria — Kali diz. — Vamos sequestrar um.
Fico calado depois do que ela diz, sentindo um frio na barriga. Depois disso, o vento começa a parecer mais forte e, o frio, mais gelado. Meto as mãos nos bolsos. A garota tira, de um bolso interno do próprio casaco, os fones de ouvido que sempre a vejo usando. Toca no display e coloca os fones.
Então, fico sozinho.
Fazemos todo o caminho até o servidor lado a lado, mas distantes. Nos isolamos. Ela distraída com seus fones e seu display; eu, mudo e mergulhado em pensamentos.
A caminhada nos toma um tempo considerável. Quando chegamos à pesada porta de metal e passamos nossos braços no console, todas as luzes da cidade já estão acesas em preparação para a noite. A porta se destrava com um sonoro estalo, e entramos. A escuridão no interior é profunda.
Kali se afasta de mim e não a vejo no escuro. Aguardo e, então, há uma explosão de luz no interior. Luz branca e dura, iluminando todos os cantos. Fileiras e fileiras de lâmpadas espalhadas longitudinalmente por todo o ambiente.

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Deuses e Feras
Ciencia FicciónEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...