Capítulo 72

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Dez minutos depois.


Ainda que eu tenha medo da ameaça, Kali não olha para trás em momento algum. Ela segue firme, decidida, na direção de seu refeitório, para o qual inúmeras outras pessoas também estão indo. Eu me apoio nas paredes, pelo caminho, reunindo forças para continuar atrás dela.

Minha cabeça gira e sangra. Mal enxergo à minha frente.

Kali adeja seu caminho o tempo inteiro, e mete-se em meio a grupos de pessoas que conversam, atravessando-os o mais rápido que pode, a pistola na mão. Algumas pessoas percebem a arma, mas a maioria não nota. E, se nota, ignora completamente o que se passa.

A fatalista passa o braço pelo console e entra no refeitório.

Eu me adianto e empurro quem aparece em minha frente.

Ignoro completamente os comentários e os xingamentos e passo o display no console. Entro no refeitório.

Kali anda a passos largos por ele com os olhos grudados em uma mesa específica. Lenina está sentada com Ellie e as duas outras garotas em volta da mesa, e elas conversam até que a fatalista se aproxima.

— Merda. — Murmuro.

Todas as quatro se calam.

Eu cambaleio e tropeço meu caminho até a mesa.

As garotas olham para Kali, que começa a falar.

Eu não ouço suas primeiras palavras.

No rosto da mercadora com quem fiquei, há um sorriso que começa de leve, nos cantos da boca, e que logo se espalha por todo o restante de sua extensão. Meu tornozelo dói como nunca, e eu tento correr pelos mínimos corredores formados pelas mesas e cadeiras o mais rápido que posso.

No exato momento em que chego a elas, a garota levanta a arma.

— Você tem algo que me pertence.

As amigas dela se afastam aos poucos. Ellie, no entanto, permanece sentada, ainda que calada.

— Kali — eu digo, pegando seu ombro com minha mão esquerda. — Não faça algo de que possa se arrepender.

A pistola volta a me mirar.

— Eu disse a você pra não me seguir.

— Eu sei. Mas não posso deixar que você arruíne tudo que construímos — digo, me aproximando lentamente. Ao mesmo tempo, as duas amigas de Lenina se levantam e se afastam. — Nós lutamos durante muito tempo para chegarmos onde estamos e, agora, se você fizer isso, só vai confirmar as próprias suspeitas. De que nada disso valeu. De que tudo não passou de um jogo.

Eu lutei, Harlan — ela diz. — Foi você quem destruiu tudo.

— Nós estamos encurralados — eu digo, olhando para ela. — Não há mais nada que possamos fazer.

— A Teia venceu a vocês dois. — Diz Lenina.

Eu dou um passo mais à frente, e Kali me olha.

— Fique longe, Harlan, antes que eu estoure a sua cabeça de uma vez.

A esse ponto, todo o refeitório olha para nós.

A pistola volta para Lenina, que continua sorrindo.

— Não adianta me ameaçar, Kali — diz ela. — Não importa o que você pensa, ou o que você faça. Você está encurralada. A Teia venceu vocês dois, e, agora, só resta a vocês cumprir com o que falta de seus destinos — o sorriso só faz aumentar. — Depois que Harlan roubou você e esvaziou seu display, eu transei com ele. Transei com o garoto pelo qual você chorava nas noites que passava comigo.

Kali respira fundo, mas não solta o ar. E, também, não olha para mim.

— Me dê o colar.

— E se eu não der? — Pergunta Lenina. — Ele estava no relatório de bens do Harlan, por todo esse tempo. E ele o roubou, e, quando o fez, ele o deu para mim. Agora esse colar é meu. E não há nada que você possa fazer para tirá-lo de mim.

— Eu posso matá-la.

Ela duvida.

— Não está em tempo, Kali — diz. — Sabe muito bem o que vai acontecer a você, caso me mate antes do tempo.

— Eu duvido que haja alguma coisa que a Teia ainda possa fazer para me punir.

Os olhos dela brilham, em chamas.

— Você é uma hipócrita, Kali — diz Lenina. — Você sempre disse que não se encaixava, que se sentia deslocada. Sempre disse que achava que não estava em seu lugar certo. Que não deveria ser seu destino fechar o arco de pessoas que nem conhecia. Que não queria ser uma fatalista. Se me matar, você só vai selar o seu destino. Vai tornar-se, definitivamente, de corpo e alma, aquilo que nunca quis ser. Uma assassina.

— A pessoa que eu era já não existe mais.

— Não existe, é verdade — concorda Lenina. — Você foi moldada. Já não é mais quem sempre quis ser. Agora é quem deve ser. Quem a Teia sempre lhe disse que é, e você nunca concordou. E tudo o que aconteceu agora serviu apenas para uma coisa: para dizer a você que você é e sempre foi essa pessoa. E você realmente acha que é. Mas se engana. Ainda há tempo para desfazer seus erros. Ainda há tempo de reverter seu futuro e toda a noção de quem você é. Não cometa outro erro. Não torne-se essa pessoa. Se você me matar, nunca deixará de sê-la.

— E você nunca deixará de ser uma traidora. — A fatalista estreita os olhos.

— Que opção tenho? Que opção nós temos? — Pergunta. — Você tem opção. Tem a chance de não apertar esse gatilho. Tem a chance de me deixar viva e ser quem você realmente é.

— Eu sei quem eu sou.

— Você tem a chance de escolher o caminho certo. — Diz Lenina, seus olhos brilhando.

A pistola não abaixa.

— Eu sei qual é o caminho certo.

O brilho nos olhos da mercadora desaparece.

Seu sorriso, também.

— Kali, você não pode fazer isso.

— Sim, eu posso — diz ela, e seus olhos poderiam derreter os da garota à sua frente. Poderiam dissolvê-la por completo. — Eu posso fazer isso.

O dedo sobre o gatilho fica tenso.

Todo o refeitório espera.

Eu estou paralisado.

Mesmo que quisesse, não poderia fazer nada.

— Eu... não estou pronta. — É tudo que Lenina diz.

O gatilho é apertado.

O sangue espirra, com violência, e carne e cérebro se espalham pelas mesas, pelo chão. A brancura do ambiente fica escarlate. Todos os pensamentos de Lenina e tudo que pudesse haver dentro de sua cabeça estão agora espalhados nos azulejos do chão e no compensado das mesas. O som ensurdecedor do tiro reverbera pelo salão, ecoando. Há um grito, mas, o que se segue, é um silêncio incômodo e pesado. Um silêncio sólido.

Ninguém ousaria falar qualquer coisa.

Ellie continua sentada, os olhos na direção do que sobrou de Lenina: apenas um fantoche do que ela foi, o rosto despedaçado e irreconhecível. Suas mãos tremem sobre a mesa, mas ela nada diz. Uma lágrima solitária corre de seu olho e limpa o sangue que respingou em sua face.

A pistola permanece erguida.

Kali respira fundo.

Depois, guarda a arma, dá a volta na mesa e se abaixa. Do meio dos cabelos vermelhos de sangue ela tira o colar de ouro.

Examina o pingente de aranha e bota o colar em volta do pescoço.

Depois, simplesmente sai.

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora