Começo da noite. Praça atômica.
Me prostro ao lado de Jayden e Mael sob um céu muito baixo e muito escuro. Nuvens pesadas e negras o tomam por completo, por todo o horizonte.
Tenho vergonha de olhar para Jayden, mas me forço a fazê-lo.
— Jayden, me desculpe pelo outro dia — digo. — Eu... não queria magoá-lo.
Ele respira fundo e solta o ar lentamente dos pulmões.
— Está tudo bem, Harlan. — Ele diz, e olha para mim, com um sorriso nos olhos.
— Eu estava cego — continuo, em voz baixa. — Cego pelo que estava fazendo. Mas, agora, tudo mudou... e por minha culpa. Eu queria poder ter o colar para deixar que você o segurasse, mas eu não o tenho mais.
— Eu sei.
Ele estende a mão e segura a minha com força. Eu me sinto um pouco melhor.
Mael, no entanto, apenas lança um olhar de desgosto em minha direção.
— Essa é a última vez que eu vou ver vocês.
Os dois me olham.
— Eu zerei meu display — digo, ainda segurando a mão de Jayden. — Quando roubei a Kali, fiquei com todas as galerias vazias.
— Mas isso não significa que você vai morrer hoje. — Diz meu melhor amigo.
— Significa, sim — eu respondo. — Ela gastou todo o tempo de tolerância que tinha, seis meses, com Leon. O melhor amigo dela. Ele já estava pronto para ter o arco fechado há seis meses, e o prazo estourou agora. Quando isso acontece, o alvo é levado para a CMT e o fatalista é intimado a matá-lo sob supervisão dos mantenedores.
— E o que o leva a crer que isso vai acontecer com você? — Pergunta Mael.
— Ela não me mataria se não fosse obrigada.
Depois de proferir a frase, começo a me perguntar se ela é verdadeira.
Eu espero que seja.
Antes que eu ou eles tenhamos tempo de falar qualquer outra coisa, o orador vai à frente do palco e começa a falar.
— Qual é a função de um rebelde na Teia?
Como sempre, ele anda de um lado para o outro, mas, hoje, ele parece mais frenético. Seus passos são mais rápidos e firmes. Seus olhos passam pela multidão. Ele parece procurar alguém com os olhos.
— Ainda que a Teia seja uma entidade virtual onisciente, onipresente, onipotente, existe a oposição — ele diz, as mãos segurando uma à outra às suas costas. — Ainda que a humanidade tenha atingido um nível inimaginável há um século, ainda que o patamar em que nos encontramos social e tecnologicamente fosse impensável para as sociedades que nos precederam, a oposição continua existindo. Uma oposição que acredita que a instalação de extensões corporais que auxiliam na convivência humana e na realização de tarefas, no aprimoramento do trabalho, é uma mazela. Uma oposição que se crê correta ao defender que vivemos uma crise e que a solução seja voltarmos ao passado. Retroceder.
A multidão fica mais quieta nessa cerimônia do que em qualquer outra.
— Aonde a Teia nos levou? — Ele pergunta. Pela primeira vez, ele realmente parece estar fazendo uma pergunta. Não uma pergunta retórica, mas uma verdadeira pergunta ao público. — Atingimos a perfeição social. Todos dentro da Teia possuem uma função fundamental, capaz de fazer diferença em todas as instâncias de nossa sociedade. Se isso não ocorresse, não seriam necessárias atualizações ou curingas para substituir valiosas contribuições de diversas pessoas que, infelizmente, acabam se acidentando, tornando-se incapacitadas de cumprir com seus displays. Todos nós somos peças essenciais para o funcionamento dessa gigantesca máquina estatal. Sem a contribuição de cada um de nós, a Teia não seria o que é. Todos somos insubstituíveis.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...