Tarde. Centro de treinamento.
Eu e Kali esperamos no interior do lugar pela chegada de sua torturadora.
Sybil passa pelo arco da entrada olhando para o display, aparentemente distraída. Então, olha para nós, e fecha a cara.
— Quem é o garoto? — Pergunta.
— Deixe que eu falo. — Murmura Kali.
A sensação que me perpassa é perturbadora. Há algo de errado com essa mulher. Kali com toda certeza já percebeu isso, e é possível que sinta essa sensação todos os dias, durante a tarde. Ser obrigada a permanecer todos os dias por um turno inteiro com uma pessoa especificamente responsável por torturá-la não deve ser muito agradável.
— Este é Harlan Montag, meu par. — Diz a garota.
Faço um sinal na direção da mulher com a cabeça, como fiz com Leon. Ela não corresponde.
— Você está aqui para praticar suas técnicas físicas — diz, entre dentes. — Desde o começo ficou estabelecido entre nós que este período seria exclusivamente para seus treinos, e que eles seriam feitos apenas entre nós duas. Você está claramente desobedecendo uma de nossas regras.
Kali faz que sim.
— Eu sei — diz, e as sobrancelhas da outra se curvam para dentro. — Mas é por uma boa razão.
Sybil cruza os braços.
— Estou esperando.
— Eu e Harlan somos pares. Pares únicos, um do outro — diz a garota, e há uma mínima hesitação por parte da torturadora, quase imperceptível. — Depois da última grande atualização, ele se tornou, também, um de meus alvos. Descobrimos que a única maneira de reverter o que aconteceu seria com uma nova atualização.
— Eu não me importo com seus alvos ou seus pares — diz a mulher. — Eu não tenho nenhuma responsabilidade quanto a seu display, exceto a de que você é meu alvo.
Os olhos dela passam de relance pelo tubo metálico, pousado sobre uma reentrância na parede não muito distante de sua mão. O que aconteceria, caso ela decidisse punir Kali, agora? Eu seria punido, também?
— Leon me disse que você se envolveu com isso. Que já tentou uma atualização — a fatalista fica o tempo inteiro com as mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta, com o corpo contra a parede. — Ele disse que eu deveria falar com você sobre isso.
Cada vez mais parece que o rosto de Sybil se fecha, e ela cruza os braços.
— Leon é um imbecil.
Por alguns momentos não parece que ela vai falar alguma coisa.
— Eu já me envolvi com atualizações, sim — diz, por fim, como que cedendo, embora sua expressão continue pesada. — Eu tentei uma atualização em uma ocasião. A razão é irrelevante. Eu procurei por grupos de rebeldes, mas eles são difíceis de achar. Contatei outros mantenedores da mesma subcasta que eu — por alguma razão ela não fala a palavra "torturadores". — Eles souberam me dizer muito pouco. Mas eu acabei achando um grupo de pessoas da casta dos subsistores. Eles pretendiam encontrar uma solução para se desvencilhar de seu trabalho, extremamente penoso, nas plantações subterrâneas. Foram à CMT, trataram com o Programa de Proteção ao Fluxo Humano. Eu os segui, mas a certa distância — ela mostra os dentes. — Se eles fossem capazes de conseguir uma atualização, eu certamente conseguiria, também. Mas em certo momento, eles tomaram a decisão de assumir qualquer risco para atingir seus objetivos.
— O que eles decidiram fazer? — Pergunta Kali.
— Pelo que sei, pretendiam falar com um programador — ela diz, com escárnio. — Eu disse a eles que era estupidez. Um programador jamais faria o que eles pretendiam. Mas eles disseram que queriam tratar na raiz do problema.
A garota concorda com a cabeça.
— E o que aconteceu a eles?
— Voltaram ao subterrâneo.
— E quanto a você? — Pergunto. Kali me olha inquisidoramente. — Não encontrou uma solução sozinha?
— Não. — É tudo que ela responde.
Ela permanece de braços cruzados, nos examinando com cautela. Passa um tempo considerável olhando para mim.
— Vocês certamente já ouviram falar de Fenrir Roth. — Diz ela.
Concordo com a cabeça. Kali não emite qualquer resposta.
— Talvez vocês devessem falar com ele — continua. — Ele sabe absolutamente tudo a respeito de rebeldia e de falsa rebeldia.
— Você falou com ele? — Pergunto.
— Sim. Falei.
Ela volta a ficar quieta, a falta de resposta me constrangendo.
— Eu tentei outro ato de rebeldia, depois de falar com ele — diz ela. — Eram outros tempos. Tempos nos quais a minha missão dentro da Teia ainda me parecia pouco clara. Perguntei a Fenrir o que aconteceria caso tentasse matar meu fatalista.
Kali se apruma de leve.
— Você sabe quem é seu fatalista?
— Descobri acessando os computadores dos mantenedores — diz Sybil. — Não é apenas você que é uma mantenedora, por aqui.
— Mas minha subcasta não é a principal.
— Nem a minha. Mas você é uma fatalista — o escárnio na voz dela volta a aparecer. Ela retorna à história. — Depois de saber quem é meu fatalista, decidi que tentaria...
Ela fica subitamente muito mais séria, e olha para a garota.
— Tentaria me vingar da Teia, matando-o. Assassinando meu assassino.
Percebo o lábio inferior de meu par tremendo de leve.
— Fatalistas não são assassinos. Nossa função é unicamente a de fechar arcos.
— E "fechar arcos" não é apenas uma maneira diferente de se dizer "terminar uma história"? — Pergunta Sybil. — Falem com Fenrir a respeito. Ele é um artífice. Certamente terá muito a falar a respeito de fatalistas.
— Sim. Ele tem.
A resposta é curta e grossa, e até mesmo a tutora da garota parece se surpreender. Então, dá um sorriso enviesado, que desaparece no instante seguinte.
— Eu, é claro, não consegui fazer o que pretendia — diz ela, ainda de braços cruzados, imóvel. — A Teia tem todo tipo de artifício para impedir seus subjugados a subjugarem-na. Por isso a falsa rebeldia. E, é claro, o Programa de Fluxo.
— E Dimitri O'Neil.
Há um olhar de reconhecimento trocado entre elas.
— Você já o conhece, pelo visto.
Kali permanece quieta.
Um silêncio constrangedor toma conta do centro de treinamento.
Sybil finalmente descruza os braços.
— Espero que você saiba que precisa sair para que sua garota cumpra com suas responsabilidades. — Diz a mulher, olhando para mim.
— É claro. — Digo, em voz baixa.
Faço um sinal com a cabeça para a torturadora, e ela, outra vez, não o corresponde. Kali segura meu braço.
— Me encontre do lado de fora no começo da noite — diz. — Temos muito a fazer.
Concordo. E então saio, deixando-a à própria sorte.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Deuses e Feras
Fiksi IlmiahEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...