Capítulo 88

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Um novo dia.

Mas obscurecido por uma pesada névoa. A neve para de cair. A claridade toma o céu aos poucos, mas ilumina a cidade de cinza. As ruas parecem mortas, completamente vazias na troca da madrugada pela manhã, que ocorre gradualmente. O furgão cruza as ruas buscando a Zona Industrial.

Eu olho para trás, por algum tempo. Através do vidro traseiro, posso ver a pesada coluna de fumaça negra subindo para o céu baixo de névoa, à distância.

— Como vamos fugir? — Pergunto.

Kali aperta com força o volante e respira fundo.

— Há uma escada de emergência junto da muralha na porção Leste, perto do começo do rio, na Zona Industrial — ela diz. — É só subir essa escada e descer do outro lado. Pode não ser tão fácil quanto parece. Depois, é preciso seguir para o Sul. O caminho passa pelo Leste, mas é ao Sul que ficam as vilas de imunes.

Concordo com a cabeça.

— Eu não vou conseguir subir a escada de emergência sozinho.

— Eu sei.

— E não há qualquer tipo de segurança? — Pergunto. — Quero dizer, é só subir a escada de emergência e fugir?

Ela morde o lábio inferior.

— Foi Blair quem me falou a respeito — diz ela. — Disse que quem descobriu foi um fornecedor de nectarina do alto do rio. Que alguém tentou e conseguiu sair por lá. Algo que nunca foi noticiado, é claro. Aparentemente ele foi aniquilado do lado de fora.

Concordo outra vez.

— Mas o fato de isso ter acontecido deve ter feito ser implementado algum tipo de segurança.

— Sim. É possível. Só vamos descobrir quando chegarmos lá.

Uma suspeita se instala em meu âmago, mas decido não dizer nada.

Ela dirige por mais algum tempo, até chegarmos tão próximos do muro que é impossível ver o seu topo. Sua altura é enorme. Daqui, ele parece ainda maior, sua magnitude parecendo representar o tamanho e o poder da Teia. Aos pés do enorme muro, é difícil perceber a existência de qualquer outra coisa, ou mesmo imaginar algo que possa ser maior do que ele e a própria Teia.

O veículo para no meio de um espaço aberto.

Há neve acumulada por toda parte. Alguns metros adiante fica o rio onde se encontra com o muro, e as grades que permitem que a água passe. No interior da cidade, todo o seu curso foi concretado e canalizado de maneira homogênea. Um grosso duto traz água suja de uma fábrica do outro lado da margem. O espaço aberto em que estamos se parece com uma praça, e o chão é composto por paralelepípedos.

— Certo — diz Kali, reunindo seus pensamentos. — A saída oficial de Dínamo fica lá — ela aponta para um edifício baixo colado à muralha, pintado com a mesma cor cinza-escuro, visível apenas por conta das janelas no segundo andar. Há cancelas de todos os tipos e cabines e grades. — Foi por essa saída que Blair foi para o lado de fora, na missão de conquista. Obviamente é impossível sair a partir dela.

— E quanto à escada?

— Fica junto do edifício — diz Kali. Eu olho melhor e vejo que realmente há uma escada, completamente preta, camuflada no muro. — Precisamos acessar o lado de dentro para só depois alcançar a escada.

Eu olho para a frágil e vertiginosa escada de metal.

— O pior não será entrar. — Comento.

— Não. O pior vai ser subir.

A escada não tem qualquer tipo de proteção.

— E eu suponho que Ceres tenha encontrado uma brecha no sistema de segurança desse portão de entrada, também — resmungo. — O que vai fazer com que a nossa entrada seja facilitada.

Kali olha para mim.

— Se ela tivesse conseguido hackear esse posto de controle, certamente a saída seria através do portão, não pela escada. — Diz ela, com uma ponta mínima de ironia na voz.

Ela se estica por sobre o banco da frente e agarra sua sacola preta.

E, de dentro dela, tira a pistola.

— Harlan, eu vou precisar de sua ajuda.

Ela pousa em meu colo a arma.

— Você quer que eu use essa arma? — Pergunto.

— Você precisa — diz ela. — Não vamos conseguir passar sem usá-las. É impossível. E não há mais nada a perder, não há mais nenhuma barreira a ser ultrapassada. Você já não faz mais parte da Teia e está à parte de tudo que ocorre nela. Por mais que seja difícil de manejar a arma com uma só mão, você vai precisar me ajudar.

Kali tira duas submetralhadoras de dentro da sacola e segura-as com firmeza.

— Assim que sairmos do furgão, estaremos visíveis para a Teia — ela diz, verificando os pentes de balas das três armas. — Então teremos de agir o mais rápido possível. Mesmo com as distrações que nós criamos, estaremos propensos a ser encontrados, e nós não queremos que isso aconteça.

Ela põe a mão na maçaneta, mas eu a impeço de sair.

Olho para a arma em meu colo, e, então, para a garota.

— Kali, eu não sou um assassino.

Ela dá um sorriso, aproxima a boca da minha e me beija.

— Nem eu — ela diz. — Tudo seria muito diferente se eu não tivesse sido forçada a ser uma fatalista. Mas a escolha de castas é aleatória. Quando estávamos no Núcleo de Nascimentos, nós vimos. Qualquer um poderia ser um fatalista, um assassino. Eu, ou você, ou qualquer outra pessoa. A Teia sabe que é possível moldar qualquer um a um papel específico na sociedade. E eles me moldaram.

Ela para de sorrir.

— E eu moldei você.

A garota segura meu rosto em suas mãos.

— E peço desculpas pelo que fiz você passar — ela fala, em voz baixa. — Eu sei que nada deveria ter acontecido dessa maneira. E eu sei que você não é um assassino, mas eu também não sou. Nunca fui. E é justamente por isso que estamos fazendo isso, agora. Porque eu nunca me senti uma fatalista.

Ela põe a pistola na minha mão e fecha meus dedos na coronha.

— Entenda isso como uma vingança. Uma vingança por tudo o que fomos forçados a ser.

Um fatalista, um assassino, um salteador.

Um boneco, manipulado durante todo esse tempo.

Um deus... ou uma fera?

— Entenda isso como justiça.    

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora