Eu e Kali não falamos nada, por algum tempo.
Olho para ela, tentando encontrar alguma pista do que está pensando, mas os olhos dela estão terrivelmente opacos. Como no dia em que ela se drogou com a nectarina, está completamente imprevisível.
— Porque não permitiram que nos suicidássemos, então? — Pergunta ela.
Silas Markham não pronuncia palavra; espera que ela desenvolva a questão.
— Se caso saltássemos do topo da muralha e morrêssemos com o impacto ainda morreríamos escravos, qual é o motivo para vocês não terem permitido que isso acontecesse? — Ela pergunta, movendo os braços e forçando-os nas algemas. — Ou, se nos tinham à sua mercê, porque não nos liquidaram? Porque atiraram em nossas pernas e nos levaram ao Hospital Geral, ao invés de meramente nos matar, logo?
Ele pigarreia de leve.
— A questão é muito mais profunda do que isso — ele diz, segurando as mãos. — Como eu já lhes disse em outra ocasião, há pouco tempo, de nada serve à Teia um rebelde morto. Um rebelde morto pode ser considerado um mártir e, a partir de sua morte, sua imagem e ideais podem ser tomados como ídolos. As mortes de Fenrir Roth e Edward Blair passaram despercebidas, até certo ponto. Suas mortes existiram apenas como mortes, levando-se em consideração os displays zerados de ambos. A explosão do prédio nada mais é do que uma pequena tragédia, que pode ser superada através da substituição dos mortos por novos integrantes da sociedade.
Ele olha para o muro.
— A morte de dois rebeldes, um desprovido de display e, outro, responsável por uma das maiores atualizações da história dessa cidade, através de um suicídio do topo da face Leste da muralha que cerca nossa cidade, porém, possui uma força narrativa muito mais forte — ele diz, com aparente calma e serenidade. — Caso a notícia de sua morte se espalhasse, seria tomada como por um martírio, e as consequências de tal ato impensado se estenderiam de maneira indesejada. Pelo menos, à Teia.
Dimitri permanece obedientemente calado, atrás do orador.
— Temos noção de o quanto a história de amor proibido existente entre vocês dois tomou proporções alarmantes, ainda que tudo o que existia entre vocês fosse um cálculo matemático feito pela própria instituição estatal que vocês pretendiam desestabilizar — ele admite. — E essa história fantasiosa espalhou-se como um vírus pelas mentes de nossos cidadãos, contaminando-os com uma doença perigosa, caso não tratada rapidamente.
— E como se trata a doença da rebeldia? — Pergunta Kali, a voz afiada. — Com lavagem cerebral?
— De certa maneira, sim — ele responde, ainda sem sorrir ou demonstrar qualquer tipo de emoção. — Através de uma cerimônia de inserção bem ministrada é possível fazer com que toda a população da cidade tenda para o que a Teia precisa e deseja. Por outro lado, a situação que vocês instauraram é extremamente delicada, e dificilmente seria resolvida através de uma simples cerimônia. Neste caso, nós precisamos tomar medidas especiais.
— Motivo pelo qual não matamos vocês dois no topo do muro. — Diz Dimitri.
Markham parece prestes a ralhar com o subordinado pela interrupção, mas parece mudar de ideia.
O'Neil dá um passo à frente e se aproxima de nós dois – mais de Kali do que de mim.
Ele põe a mão esquerda sobre a cabeça dela e passa os dedos por seus lisos cabelos negros.
— Também é este o motivo pelo qual percebemos ser necessário reabsorver seu antigo par à Teia — diz ele. — Descobrimos que estivemos, durante todo este tempo, atuando no elo forte da relação entre vocês.
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Deuses e Feras
Fiksi IlmiahEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...