Capítulo 37

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Noite seguinte. Depósito dos mercadores.


Tenho um pequeno dispositivo de armazenamento móvel firme na mão. A passos largos, atravesso o salão com os computadores, a essa hora, vazio.

Passo o braço esquerdo sobre o console na minha mesa e abro a porta do armário debaixo dela. Coloco o dispositivo no interior e olho para ele. Depois, fecho a porta e levanto.

— O que aconteceu com você? — Pergunta Lenina.

Dou de ombros, apoiado com as mãos na borda da mesa, olhando para o pequeno ponto de luz que pulsa como um coração, indicando que o computador continua vivo, ainda que adormecido. Respiro fundo e bato com os dedos sobre a tela, incomodado. A garota surge ao meu lado e passa a mão em minha nuca, arrepiando todos os pelos de meu corpo e me fazendo levantar a cabeça para olhá-la.

Lenina balança a cabeça lentamente, em negativa, embora haja um sorriso em seus lábios. Sua pele alva se destaca contra o escuro do depósito, seus cabelos vermelhos parecem mais vívidos do que nunca. Ela põe uma de suas mãos sobre a minha, ainda na beirada da tela.

— Qual pode ser a razão para Kali me querer fora de seu display? — Pergunto.

A garota dá de ombros, seu corpo inteiro respondendo ao movimento.

— Eu não sei — diz. — Pode ser que, por alguma razão, eu tenha errado quando disse que ela era apaixonada por você. Talvez o que ela sentisse fosse algo passageiro. Talvez tenha se arrependido de ter roubado o colar e ter ocasionado tudo o que se passou. Quem sabe queira a atualização para se renovar por completo, porque queira desaparecer daqui, encontrar outro caminho para si.

— Mas isso é impossível.

— Só que ser impossível nunca a impediu de tentar. — Retruca a garota.

Ela coloca sua mão dentro da minha.

— O fato de Kali querer se afastar de você não é, necessariamente, uma coisa ruim — Lenina me olha nos olhos. — Significa apenas que ela quer alguma coisa diferente, assim como já quis no passado.

Eu ergo uma sobrancelha.

— O que você quer dizer com isso?

O sorriso volta a aparecer na boca dela, dessa vez um pouco diferente. Há algo por trás dele.

— Eu e Kali fomos amantes — diz. — Você bem sabe que quase ninguém é heterossexual, de qualquer maneira. Às vezes, nós ficávamos juntas. Quando a solidão dela ficava muito forte ou a nossa vontade se tornava equivalente, nós nos beijávamos.

A mão dela em minha nuca aperta um pouco mais forte, agora. Eu me viro, dando as costas à mesa e virando de frente para a mercadora.

— Vocês se beijavam? — Pergunto, sentindo sangue retumbando em meus ouvidos e a excitação descendo por meu corpo.

Lenina não diz nada, e continua me olhando.

— Foi sempre a solidão que a guiou até mim, e eu sempre a acolhi — diz. — Por alguma razão, ela sempre acreditou que o que ela tinha não era o bastante, sempre teve dúvidas a respeito de sua galeria de pareamento. Ela não sabia a razão para ter apenas um par, e não sabia o porquê de vocês dois serem tão distantes um do outro. Talvez tenham sido essas dúvidas a guiá-la até Fenrir.

Fico imóvel, a respiração aos poucos aumentando de ritmo.

— Em algumas noites, ela chorava muito — murmura a garota. — Então eu deitava junto dela. Eu a beijava, eu a fazia esquecer todos os pensamentos que turvavam sua mente. Nós ficávamos nuas, juntas, debaixo das cobertas. Eram sempre noites frias. Nós nos esquentávamos com o calor uma da outra. Nos entrelaçávamos e, de certa forma, ainda que não totalmente, nos tornávamos uma.

Ela se aproxima pouco a pouco, uma de suas mãos na minha e a outra ainda em meu cabelo, eriçando-o.

— O que vocês faziam? — Pergunto.

Lenina se aproxima. Seus lábios quase encostam em minha orelha e eu sinto o leve perfume que emana de seus cabelos vermelhos. O corpo dela fica muito perto, e nós dois quase nos tocamos.

— Ainda que fôssemos mulheres, sentíamos uma à outra — ela diz, sua voz sussurrada entrando pelo meu ouvido com delicadeza. — Eu a tocava e ela a mim, com os dedos. Eu entrava nela e, ela, em mim. Mas nem sempre era o bastante. Nos faltava algo, algo que apenas alguém como você seria capaz de nos dar.

A mão esquerda dela desce de minha nuca para a parte já excitada abaixo de meu abdômen.

Ela me acaricia, então me segura em sua mão. Seu rosto surge à minha frente outra vez, seus olhos me olham.

Então, nossas bocas se encontram.

O batom vermelho borra meus lábios. Ponho a mão em suas costas, puxando-a para mais perto de mim. Sua boca se abre, convidando-me para dentro, e eu a invado. Nos entrelaçamos. Meus dedos se metem em seus cabelos, enrolando-se neles, suas mechas se desmanchando. Ela fica de olhos fechados, até abri-los e morder meu lábio inferior com força.

Giro-a e empurro contra a mesa, e ela se dobra sobre ela. Eu beijo seu pescoço, descendo até seu peito, sentindo seu cheiro, seu gosto.

A porta deslizante do depósito se abre com um estrondo.

Subitamente, nos pomos em pé e olhamos para ela.

Um retardatário, um salteador cuja mesa fica do outro lado do grande aposento. Ele faz um sinal de reconhecimento com a cabeça e eu correspondo, sentindo minhas bochechas arderem.

Lenina segura minha mão e beija meu rosto.

— Está tudo bem — ela diz. — Continuamos outra hora.

Então se afasta de mim evai embora.    

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora