Chego cedo na Agência e a primeira coisa que faço é procurar a Sra. Beauchamp. Com toda confusão que aconteceu na sexta passada, com Andrea e Damen, acabei não vindo no sábado, e faltando justamente no meu último dia de serviço com ela.
Se o meu chefe, William Jarves, ficasse sabendo, eu estaria completamente ferrada. Afinal, ele disse com todas as palavras que se por algum motivo eu faltasse, iria dobrar o meu período de castigo. Ou seja, seriam mais duas semanas trabalhando até depois das dez da noite.
A Sr. Beauchamp estava no jardim, podando alguns arbustos próximos ao edifício três quando finalmente a encontrei. Apesar da função de podar os arbustos não ser sua, por algum motivo ela já estava habituada a fazer isso, talvez usasse como terapia, não sei.
- Se você faltou, eu sei que tem alguma justificativa. – Começou a dizer antes mesmo que eu precisasse abrir a boca. – Então pode vir trabalhar hoje à noite, e podemos dizer ao Sr. Jarves que cumpriu as duas semanas de castigo, o que não deixará de ser verdade.
- Muito obrigada, Sra. Beauchamp.
- Megan?
Viro-me para ela, pensando que talvez agora seja o momento em que começará a falar sobre como devemos encarar o trabalho com seriedade e compromisso. Duas características que eu deveria adotar em minha vida, ainda mais se quisesse sobreviver ali, na NSTA.
- Sim?
- Alguém te contou o que aconteceu com o meu rosto?
Faço que não com a cabeça.
Ninguém conversava sobre isso. Uma vez estávamos comendo uma torta, e Katherine quis saber, mas a Sra. Lucian disse a ela que deveria se interessar menos pelo o que não é da sua conta e cuidar mais da sua própria vida
- Só que foi há muitos anos. – Respondo.
Ela assente, e devolve a tesoura de poda para dentro de uma maleta de couro.
- Foi há muitos anos, quase sete, para ser exata. Mas acho que está finalmente na hora de eu te contar essa história. – Ela senta num banco de madeira e faz sinal para eu me sentar também. Me acomodo em seu lado, quando continua. – Eu conheci uma mulher há alguns anos, ela me ajudou quando perdi o meu único filho. Sim, eu tive um filho. Ele morreu de fibrose cística com quatro anos de idade. E quando um filho seu morre, bem, você apenas não quer sobreviver porque a sua vida acaba ali, naquele instante em que pensa que não há mais nada para você. Mas essa mulher esteve ao meu lado, e não aceitou quando eu disse que estava desistindo. Ela me deu um trabalho aqui na NSTA, e me fez ser quem eu sou hoje. Então uma noite, vesti a melhor roupa que tinha no guarda-roupa, e me dirigi a um espetáculo para prestigiar esta mulher que me ajudou a ter a minha vida de volta. Afinal, ela virou uma grande amiga minha, aquele tipo que você carrega no peito para sempre.
- Mas nesta noite algo deu errado, e as paredes viraram muros perigosos de chamas. O que era para ser uma noite de festa, virou uma noite de horror. Todas as pessoas correriam desesperadamente, lutando por suas vidas, e por isso demorei um pouco para conseguir encontrá-la. Se eu fecho os olhos ainda consigo ouvir o som estrondoso dos gritos, o cheiro pungente da fumaça, a neblina tornando impossível enxergar qualquer coisa, mas então, a encontrei. E corri até ela, e infelizmente era tarde. Por mais que eu conseguisse tirar os escombros da sua perna, uma madeira do palco atravessou a sua barriga. Na hora eu sabia que não haveria tempo para nós duas sairmos vivas dali, o teto iria desabar a qualquer momento. Porém, eu não queria saber de nada, daria a minha vida por aquela mulher se fosse preciso, e estava determinada a ficar até o fim. Até que o inesperado aconteceu, ela apertou forte a minha mão e usou o resto de sua força para apontar para uma garotinha que estava cercada pelas chamas, e tudo o que eu consegui ver foi aquela criança ali, paralisada, olhando com pânico em nossa direção.
Lágrimas quentes desciam ardendo pelas minhas bochechas, borrando a minha visão.
- "Minha Megzinha", disse em seus últimos suspiros, "salve a minha Megzinha". E assim eu fiz. Corri contra o fogo e peguei aquela criança em meus braços, fugindo das chamas que tentavam nos engolir. O teto começou a desabar, e nunca lutei pela minha vida tanto quanto lutei naquela noite, por aquela criança. Eu não consegui salvar a mulher, mas salvei o seu bem mais precioso, a sua filha. O que eu tenho em meu rosto... – Ela toca a metade da sua face paralisada. – Essa marca que carrego é um preço baixíssimo, porque Elizabeth Hayes, sua mãe, salvou a minha vida muito antes disso e é graças a ela que hoje eu e você estamos aqui. Sua mãe era um anjo na Terra, mas por algum motivo o nosso Criador precisou dela lá em cima. Espero que quando for a minha hora de subir aos céus, a encontre cuidando do meu pequeno Jonathan. Sinto que ainda não a agradeci o suficiente por me dar outra chance.
Os braços dela envolvem forte o meu corpo, e no segundo seguinte, ambas estávamos soluçando grudadas uma a outra.
Lágrimas insistem em cair outra vez, mas ao invés de continuar chorando, pensei no fato de que eu e a Sra. Beauchamp estávamos ligadas pela mesma noite, e de certa forma, pela a mesma pessoa.
E aos poucos fui descobrindo que algumas pessoas da agência conheceram, ou ao menos se lembravam da minha mãe.
O Sr. Poe me disse que sabia quem mamãe era, que um dia ela pediu a ele se poderia usar um de seus poemas numa peça, e assim o fez. Levou o seu poema por todos os cantos do país, apresentando-o na sua peça chamada "Não foi por Falta de Amor".
Quando perguntei ao William Jarves se era do seu conhecimento que a Sra. Beauchamp e a minha mãe se conheceram, ele respondeu que sim.
- Sim, eu sabia. – Sorriu, apertando minha mão. – Os meus superiores me obrigaram a lhe dar um castigo. E apesar de eu não trabalhar aqui quando a sua mãe trabalhou, ouvi muito dela, da sua beleza, do talento e da bondade. Então conversei com a Sra. Beauchamp, e achei que ela poderia te fazer bem tanto quanto você faria para ela.
Me recordo que Tyler uma vez disse para Olive que achava doloroso demais passar aqui na frente na NSTA, e que não suportava a ideia de saber que eu estava trabalhando no mesmo lugar que a nossa mãe trabalhou. Contudo, não entendia o que podia haver de errado em estar aqui, onde a minha mãe esteve, onde conheceu pessoas, e mudou muitas vidas.
Hoje eu entendi, finalmente entendi.
Muitos se lembravam dela.
Minha mãe não foi esquecida por nenhuma das pessoas que conheceu, e se a sentença da morte for o esquecimento, Elizabeth Hayes seria lembrada enquanto eu e todas essas pessoas vivessem. Gravada eternamente em nossos corações.
E para mim, isto parecia bastar.
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Lua Negra
RomansaMegan Hayes é uma colegial como qualquer outra, ao menos era o que pensava. Para concluir o último ano e se ver livre da escola é preciso participar de um estágio obrigatório. Por azar ela acaba sendo enviada a NSTA - uma agencia de talentos. O pro...