Capítulo LIII

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                  Há mais de uma semana eu não via Damen Coleman, mais precisamente quando comecei a trabalhar com a Sra. Beauchamp.

      Eu não ligaria para ele, e por mais que ficasse passando pelo seu contato a toda hora, não seria a primeira a ir atrás. Ontem vi Savannah, sua agente, nos corredores da agência. Mas ela estava tão apressada com seus compromissos, que se quer me notou.

      Quanto ao castigo que recebi, ele não estava sendo tão ruim quanto pensei que seria. Quero dizer, tinha a parte de limpar e lavar, essa era a ruim. Mas as pessoas que trabalhavam aqui depois que todo mundo ia embora acabaram transformando-o em algo bom.

       Era bom porque conheci a Sra. Lucian, uma mulher de quarenta anos, nada menos do que brilhante. Na maior parte do tempo limpava janelas e encerava chãos, e no tempo livre, fazia páginas e mais páginas de palavras cruzadas mais rápido do que o meu pensamento conseguia acompanhar.

       Também havia Katherine, uma jovem que tinha quatro filhos para alimentar. Exatamente por isso trabalhava meio período aqui na NSTA e resto do dia na casa de uma mulher rica. Kathy gostava de fazer desenhos no ônibus entre o caminho de um serviço e de outro. Apenas um hobby, explicou.

      Seus desenhos são lindos, foi o que eu disse a ela no dia em que acidentalmente derrubou o seu caderno e espalhou as folhas pelo chão.

       Jasper foi outro que conheci, um jovem de vinte anos irreversivelmente apaixonado pela música. Sua voz tinha um timbre incrível, e sei que se tivesse tido mais oportunidades estaria estourando nas paradas musicais.

      Ele me contou que seu sonho era ser cantor, veio morar na cidade justamente para isso, estava decidido a lutar com unhas e dentes. Contudo, um certo dia as coisas mudaram, sua irmã mais nova ficou muito doente e agora ele precisava mandar dinheiro todo mês para a cuidadora.

       E por último havia o Sr. Poe. Sua função era basicamente carregar e descarregar caixas pesadas. Este foi o único serviço que conseguiu levando em consideração que não terminou o ensino médio.

        - Naquele tempo era mais difícil, se a sua família não tinha condições, você trabalhava. E por mais que eu tenha conseguido uma bolsa estudantil numa escola boa, não poderia ser egoísta ao ponto de partir estudar e deixar meus pais passando fome. Eles eram velhos, precisavam de mim. – Explicou.

       O Sr. Poe era um homem de quase cinquenta anos, talvez mais, não soube precisar.

       Um dia qualquer eu estava esfregando um dos enormes e infinitos corredores da NSTA, e ele passou por mim.

        Acenei com a cabeça, como todos fazem, mas ele não acenou de volta. Então voltei a esfregar o chão, aqueles dias não estavam sendo dos melhores, e eu queria voltar logo para casa. E quanto mais rápido terminasse, mais rápido voltaria.

      - Senhorita?

      Levanto os olhos.

O senhor, que a princípio julguei mal-educado, ainda estava lá. Me encarando por detrás das lentes da enorme armação.

      - Sim?

      - Você poderia me ajudar um pouquinho?

       Encosto o esfregão na parede, seco as minhas mãos no avental, e me aproximo.

      - Claro. – Disse eu, reparando que ele segurava um caderno velho, que parecia ter um século de vida. – Em que posso lhe ajudar?

       - Você saberia me dizer se devo escrever "começar" com "ç" ou "ss"?

      - Começar se escreve com "ç".

     - E receio?

     - R.E.C.E.I.O – Soletro, enquanto ele anota.

      - Obrigado. – Ele diz, sorrindo. – Você é muito inteligente.

     - Obrigada.

       Meus olhos involuntariamente deslizam até o caderno. Não era minha culpa que cheguei perto o suficiente para conseguir enxergar as primeiras linhas, e ler o que parecia ser versos de um poema.

A decisão.

O que me matou foi a escolha.

Eu escolhi abandonar, optei por deixar partir.

Nunca imaginei um mundo no qual eu viveria, e ela não.

Um dia ela era o meu tudo, noutro, o meu mais belo nada.

É assustador o que a dor faz com uma pessoa.

O que ela faz com a gente.

Jamais esquecerei daquela escuridão que vi em seus olhos.

Refletindo a minha própria imagem.

De uma criatura entorpecida e sem face.

De um alguém há muito esquecido.

Um coração que já te pertenceu.

Fadado a viver o destino mais fúnebre e cruel de todos.

Uma vida inteira sem o seu amor.

- O senhor é um escritor?

- Não, minha senhorita. – Ele me encara sério, passando as mãos pelos seus cachos acinzentados. – Eu sou apenas um homem tentando sobreviver ao caos dentro de mim.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Poe já tinha passando pela porta. E sozinha, perdida em meus próprios devaneios, suas palavras tiveram mais peso do que imaginei que teriam.

Porque era uma verdade que todos nós precisávamos admitir. Eu sou apenas um homem tentando sobreviver ao caos dentro de mim, ele disse.

Não é exatamente isso que todos estamos fazendo aqui? Sobreviver ao caos? Na maior parte de nossas vidas somos apenas pessoas sobrevivendo ao caos que existe dentro de nós mesmos.

Eu sou uma garota tentando sobreviver a ele.
E aposto que você também é.

Lua NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora