De repente tudo mudou

86.

Eu fiquei preparando as carnes durante toda a aula de cultura pop que o Bernardo recebeu que foi desde Glória Groove, passando por heróis da Marvel e indo até uma discussão polêmica sobre a cor real do vestido que bombou na internet em 2015. Conversamos bastante e o atualizamos sobre informações globais (90% foi sobre fofocas e cultura pop).

-Então quer dizer que existe uma comunidade no Facebook em que as pessoas tem que falar igual um chefe de cozinha francês?

-Um chef? -O Caíque falou indignado. 

Essa semana ele disse que queria fazer gastronomia, embora não saiba fritar um ovo. O que vale é a intensão.

-Ele não é apenas um chef, ele é o Erick Jacquin. -O Caíque completou.

Passamos a tarde inteira conversando, comendo e bebendo. E em algum momento todo mundo já estava meio alto com as bebidas.

-Eu vou preparar mais um drink para a gente. -A Liara falou levantando da cadeira.

-Te ajudo! -O Caíque levantou em seguida, indo atrás dela. 

Fiquei olhando os dois preparando a bebida. O Caique deixava "acidentalmente" uma parte do corpo esbarrar na Liara e era nítido como o corpo dela reagia a ele. Eu acho tão legal ver as pessoas se apaixonando. Sabe aquele momento em que já está nítido que os dois se gostam mais nenhum dos dois ou um deles não percebeu isso? Eu acho muito legal como o amor e a paixão aparecem antes que a pessoa se dê conta da presença deles. Será que um dia eu vou me sentir assim? Será que um dia eu vou gostar de uma pessoa a ponto do toque dela fazer meu corpo reagir? Mordi o lábio para prender um sorriso. Voltei a olhar para o grupo e notei que o Bernardo me olhava olhar para os meus amigos. 

-Então quer dizer que você não lembra de nada? -A Júlia perguntou e o Bernardo parou de me olhar.

-Lembro de flashs da minha infância. Mas nenhuma cena completa. 

-Você sente falta das memórias? -Ela perguntou.

Ele negou com a cabeça.

-Tem coisas que eu gostaria de lembrar, é claro, mas já tive conhecimentos demais sobre quem eu era e eu decidi que estou muito bem sem lembrar de nada. A falta de memória está me rendendo pessoas muito legais.

-Eu nunca imaginei que ouviria o Bernardo Soares falar que nós somos legais! -O Rennan falou alto e nós rimos. 

Apesar de estar sentado na rodinha, notei que o Diego não estava nada presente. Tinha certeza que a vibe tinha batido errado para ele e, ao invés de ficar leve, ele ficou triste. 

-Diego, vem cá rapidinho, por favor. -Ele levantou e me acompanhou para longe.

-O que foi, Anne? -Ele perguntou olhando para o chão.

-Quer conversar? -Ele deu um risada sem humor.

-A bebida causou uma vibe errada. -O Diego me olhou. -Meus pais sempre brigavam comigo por que eu bebia em festas. Eles falaram que eu era muito novo. 

A Liara chegou perto da gente com um copo e eu balancei a cabeça negativamente para ela, que logo se afastou sem falar nada. 

-Eles eram pessoas bem responsáveis.

-Eram os melhores do mundo. -Ele começou a chorar de soluçar. Eu o abracei.

Todo mundo notou, mas não falaram nada. 

-Porque eles tiveram que morrer, Anne? Por quê? -Ele gritou enrolado no meu abraço. -Eu não estava preparado para viver sem eles! Quem vai me ensinar a ser um adulto? Eles não vão me ver casar! Minha mãe queria tanto netos! Ela não vai ver os netos! -Ele estava completamente devastado e eu lutava para conseguir segurar o seu peso.

A Júlia levantou e veio até nós. 

-Posso tentar conversar com ele? -Ela perguntou baixinho e eu concordei. 

O ajudei a sentar uma cadeira que tinha logo atrás dele. A Júlia sorriu para mim e eu entendi que era a deixa para eu me afastar. Deixei uma lágrima escorrer, mas a limpei rapidamente. Eu não quero nem pensar o que é ter que viver sem os pais com 18 anos. O Diego é muito forte por estar conseguindo encarar essa barra, mesmo que em alguns momentos ele precise por toda a tristeza para fora. Perder os pais na adolescência deve ser apavorante, devastador e deve deixar uma sensação de vazio horrorosa. 

Ninguém deveria passar por isso. 

Ninguém.