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Na terça-feira levei um livro para ler durante a terapia do meu irmão. Foram duas longas horas de leitura esperando o pequeno acabar a sua sessão. Ele faz terapia desde novinho e é notória a diferença que isso faz em seu repertório comportamental e na sua vida como um todo. Ele aprendeu a usar figuras para se comunicar, diminuiu as birras e consegue fazer muitas coisas sem ajuda. Cada passo que eu vejo meu irmão dando para a sua independência me deixa muito feliz e me deixa com mais vontade de fazer psicologia. Saber que os tratamentos tem o poder de ajudar os outros a terem uma qualidade de vida melhor, é incrível e eu quero muito isso para a minha vida.

-Até semana que vem, Caetano. -A psicóloga disse abrindo a porta do consultório. -Ele foi muito bem hoje. -Ela disse me olhando.

-Ah, isso é ótimo. Pois ele esses dias tem andado meio irritadinho, porque nossa mãe não está ficando em casa direito. 

-Isso pode provocar algumas desregulações nele, mas hoje, no nosso tempo, ele estava muito bem. 

-Obrigada. -Nos despedimos e fomos caminhando para casa. 

Como sempre, ele me fez parar para lhe comprar um sorvete na padaria e depois continuamos nosso caminho até em casa. Assim que passei pelo portão, vi um certo alguém de costas para mim sentado em uma cadeira de rodas com a perna engessada e algumas outras ataduras nos braços. Ele estava sozinho.

-Vai indo para casa que eu já chegou, Cae. -Meu irmão me obedeceu e eu fui até o Bernardo. Em um primeiro momento, eu fiquei com medo dele me reconhecer, mas isso seria impossível, eu sei. Quando esse medo passou, veio uma vontade de simplesmente ignorá-lo ali, afinal alguém tinha que está o olhando, né? A Flávia ou a minha mãe não o deixariam ali sozinho para sempre. Fiquei em um dilema antes de decidir me aproximar, eu não poderia evitá-lo por muito tempo, algum dia ele iria me ver e querer saber quem eu sou e é melhor eu acabar com isso logo. 

-Oi, está precisando de alguma ajuda? -Ele levou um susto e me olhou meio desnorteado.

-Ah, oi. -Assim que olhei para o seu rosto, levei um susto. Minha mãe não tinha me dito que ele havia ganhado uma cicatriz no lado direito que ia praticamente do supercilio a altura da boca. Tentei disfarçar meu espanto para não parecer indelicada, mas não acho que tive sucesso. -A Flá... -Ele respirou fundo. -A minha mãe estava apertada para ir ao banheiro e a Márcia foi chamar o marido para me ajudar a ir para o meu quarto. Você é minha irmã?

-Ai, meu deus! Não. -Será que ele conseguiu notar a repulsa que essa ideia me deu? Não quis parecer indelicada... Por que é tão estranho conversar com o Bernardo? 

-A ideia de ser minha irmã é tão ruim assim? -Ele deu uma leve risada e eu não respondi (só mentalmente).

-Eu sou a Anne, filha da Márcia. 

-Somos amigos? -A inocência de sua pergunta fez, por um segundo, minha barreira cair. Era muito estranho ver o Bernardo sem nenhuma armadura ou sem se sentir o sabe tudo. Esse menino que está na minha frente tem tudo, menos certeza de qualquer coisa de sua própria vida. Ele depende das pessoas para dizerem se o conhecem e se são amigos. Pensar que se alguém de mau caráter chegar perto dele, é capaz de fazer a sua cabeça...

Quem está vendo filme demais agora? A voz da Liara se formou certinho na minha cabeça. Lutei para afastá-la.

Eu não vou ser a culpada por dizer a verdade, se alguém quer falar que ele era um merda, esse alguém não será eu.

-Não. -Ele pareceu triste com a resposta.

-A gente mora no mesmo terreno e temos praticamente a mesma idade, como podemos não ser amigos? Eu deveria ser um babaca por não querer ser seu amigo. -Deixei uma risada escapar.

Oi? Eu ouvi mesmo isso? Eu não consigo deixar de achar isso muito estranho. Isso foi o Bernardo sendo simpático comigo? Querendo ser meu amigo? Se eu contar isso para a Liara ou para o Caíque eles não vão acreditar em mim.

Não mesmo.

-Eu sou muito ocupada. -Avistei a Flávia, minha mãe e o meu pai se aproximando.

-Será que podemos conversar mais depois? -Dei de ombros e antes que ele pudesse contestar meus pais e a Flávia chegaram perto de nós.

Eles me cumprimentaram e eu fui para casa ficar com o meu irmão, tentando não pensar nessa conversa maluca e civilizada que eu tive com o Bernardo.

Eu. Ele. Conversando. Civilizadamente.


De repente tudo mudouOnde histórias criam vida. Descubra agora