Na noite anterior, Enzo usava um head com microfone e apertava freneticamente os botões de seu controle. Estava sentado em uma confortável cadeira gamer instalada no centro da sala de estar de seu luxuoso apartamento, no bairro Cidade Jardim. Quando se mudou para lá, mandou instalar uma televisão que ocupava a parede do chão ao teto e transformou a maior parte da sala em seu "escritório" de trabalho. Próximo ao bar, colocou um sofá e uma televisão menor para receber convidados. Não ficou uma decoração bonita, mas percebia-se que era uma decoração feita por alguém muito rico, já que desde as bebidas do bar até as obras de arte eram valiosas.
Naquela noite, a grande televisão reproduzia uma perseguição pela floresta amazônica em uma estética tão realista que parece um filme. Não se vê o rosto do perseguidor, apenas sua escopeta, o que indica que talvez a narrativa se passe no passado. Ele corre atrás de sua presa, mas a vítima é veloz, afinal carregava apenas um arco e flecha, bem mais leve que a escopeta. O perseguido se enfia no meio da mata, mas seu inimigo não desiste. Subitamente, a escopeta sai de cena e uma espada suja de sangue surge nas mãos do perseguidor.
- Eu vou esfolar esse seu avatar de mulherzinha! - Ameaçou Enzo assim que seu avatar empunhou a espada. Perto dele, seu celular apita e vibra constantemente. Ele espia com os olhos, mas ignora ao ver que eram mensagens de Adhemir ameaçando pedir que o pai de Enzo ligue para ele. Enzo vinha evitando atender o homem, que tinha sido contratado para ser seu gerente de campanha, pois não tinha certeza se queria seguir a carreira política de seu pai, Werner Ludwig. Mas, segundos depois, o celular tocou e na tela aparecia em letras maiúsculas a palavra "PAI". Enzo deu um salto de sua cadeira para atender o celular.
- Pai?...Não, é que eu... Mas pai, eu...Só nesse mês eu fui em cinco reuniões para definir os "últimos detalhes"...Não é irresponsabilidade... Claro que eu estarei amanhã às 8h...E o senhor melhorou, você tava gripa.... - Werner sequer deixou Enzo terminar de falar, antes de desligar a chamada.
Mesmo chateado, Enzo concluiu que se seu pai está com disposição para dar bronca, então deve ter melhorado. Os gritos de seu avatar lhe chamaram atenção. Ele estava sendo atacado pelo avatar que, até alguns minutos atrás, fugia dele, mas, agora, o acerta diversas flechadas e vem se aproximando, confiante, revelando seu corpo feminino de uma indígena.
- Olha que veadinho! - Disparou Enzo ao mesmo tempo que se jogava na cadeira e pegava o controle de volta. Apertou os comandos para que seu avatar sacasse a escopeta e atirasse diversas vezes na direção da indígena que cai ao chão, agonizando. Na tela aparece "MULTISTRIKE" e abaixo dela a seguinte mensagem: "Você venceu! Escolha uma das opções, "Escravizar ou Executar?".
- Executar! Índio é lerdo demais! - Decidiu Enzo ao apertar a opção que mostra o avatar dele caminhando em direção a indígena. Notavelmente, seu avatar é um bandeirante da época da colonização do continente sul-americano. Ele estende a escopeta e lhe dá o tiro de misericórdia. A tela escurece em fade-out levando o avatar de Enzo para uma vila, onde uma escrava se aproxima dele. Ela lhe desafia para um duelo em troca da libertação de alguns escravos. Enzo não aceita o convite e pega seu celular para mandar mensagem para sua namorada secreta. Depois de algumas mensagens, jogou seu celular de lado, pegou seu controle e voltou a jogar o Multistrike. O avatar da escrava, chamado "@dirtysecrets" ainda insistia em um combate. Diante disso, Enzo acabou aceitando o combate.
Carregando uma foice, a escrava sobe em cima de uma carroça enquanto o avatar de Enzo empunhava a mesma espada ensanguentada, usada na partida anterior. Vendo a mulher em cima da carroça, mas sem demonstrar intenção de atacar, Enzo ameaçou:
- Desce daí pra ver se não te atropelo! - Porém, a pessoa por trás do avatar da escrava não respondeu nada - Ué? Chamou para a treta e agora vai arregar?
Novamente, Enzo não recebeu resposta e decide fazer seu avatar se aproximar da carroça, mas quando chegava perto demais, seus golpes não alcançaram sua inimiga. Porém a foice dela conseguia acertá-lo e a cada golpe, a energia vital do avatar de Enzo caia consideravelmente.
- Que porra é essa? Não vai falar nada, não? - questionou de forma raivosa enquanto apertava desesperadamente os botões do controle - Não é possível que nenhum golpe acerte essa macaca!
Os golpes da escrava subitamente foram interrompidos. Enzo aguardou uma resposta do oponente, mas não ouviu nada. Antes que percebesse, a escrava pulou da carroça em direção a Enzo e assim que pousou no chão, sua foice desapareceu como mágica. Isso provocou um estranhamento em Enzo que falou pelo microfone:
- Que otário! Acha que consegue me derrotar sem nenhuma arma? Eu sou campeão dessa merda, não é qualquer lixo que consegue me derrotar.
Os botões do controle de Enzo foram apertados em uma combinação que faria o avatar correr e fazer golpes sucessivos na inimiga, mas o resultado assustou o rapaz. Como se previsse os golpes do avatar de bandeirante, a escrava se esquivou e bloqueou os golpes, além de emendar com diversos socos na barriga do homem que naquele momento estava com sua energia vital quase zerada. Enzo não acreditou quando seu avatar caiu de joelhos em frente a adversária, mas acreditou menos ainda quando ele levou um golpe no rosto e apareceu a tela "MULTISTRIKE". Em seguida, a mensagem que Enzo temia apareceu: "Você perdeu! Aguarde para saber seu destino?".
- Ah não! Não é possível! - Enzo percebe o que o vencedor pode fazer e muda seu comportamento, sendo mais agradável - Você não vai me escravizar, não, né? É que eu tenho esse feito aqui na comunidade do Multistrike. Eu nunca fui escravizado!
O silêncio do outro lado rapidamente fez com que Enzo voltasse a ficar furioso. Ele jogou o controle no chão e engrossou a voz:
- Só gente fraca é escravizada. E eu já te aviso que não sou esse tipo de gente. Se você fizer isso, vou descobrir seu endereço e o "Swatting" vai ser o mínimo que vou fazer!
Dessa vez, o silêncio não foi a resposta que Enzo recebeu, mas sim uma gargalhada de alguém que parecia se deliciar com o desespero dele. Enzo percebeu que ela não lhe era estranha. Em algum momento a gargalhada se misturava com a voz que, também, não lhe era estranha:
- Você sempre vai ser meu pato, Enzo!
- Muller! Tinha que ser você! - Enzo se sentou, em sua cadeira gamer, aliviado - Por um momento, eu pensei que eu ia ser escravizado! Graças a Deus era só mais uma trollagem sua!
- Pensei em tirar uma com sua cara, antes de avisar que tô de volta ao Brasil. Então tô passando aí, pra gente sair para beber. - Informou Muller como se Enzo não tivesse opção.
- Você sabe muito bem que amanhã é o lançamento da minha campanha! Não posso nem sonhar estar de ressaca - Declinou o convite do amigo, mesmo que estivesse com saudade de jogar conversa fora em qualquer mesa de bar.
Mas Muller não acreditava que Enzo estava tão comprometido com sua campanha política. Então imaginou que teria outro motivo para ele recusar:
- Vai, fala! Tem mulher envolvida?
- Mulher? Não, tô focado na campanha. - Mentiu Enzo.
- Então vamos lá, prometo que não vamos embora tão tarde! - Insistiu Muller
- Realmente, hoje fica difícil. Até quando você fica aqui no Brasil? - questionou Enzo pensando em marcar um encontro em outro dia.
- Sinceramente, ainda não tenho nenhuma viagem marcada. Mas sabe como é, os compromissos entram de um dia para o outro.
- Então vamos nos falando ... - Enzo tentou sugerir um encontro dali alguns dias, mas foi interrompido.
- Uma pena que não vai dar. Vou ser obrigado a escravizar seu avatar. - chantageou Enzo.
- Você não teria coragem! - Exclamou Enzo.
- Até parece que você não me conhece desde que somos crianças. Posso apertar o botão?
- Tá bom. Você venceu. Eu vou tomar uma com você! - Disse Enzo ao ceder a chantagem.
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Sete Erros
General FictionSete Erros é uma jornada pela história do Brasil que tem como pano de fundo diversos momentos: - Os dias que antecederam a visita do Santo Ofício - A criação da bandeira de Pernambuco no fim do Brasil Colonial - Um romance impossível às vésperas da...