CAPÍTULO 19 - A ÚLTIMA ENTREGA DO DIA

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Enquanto Enzo se recuperava, na mente de Xica, ela se dirigiu até a Basílica Santuário Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde realizaria a última entrega de sapatos daquele dia. A escrava entrou na basílica, mas não passou de sua nártex, visto que não era batizada. Dali, Xica podia observar a nave central que estava quase vazia se não fosse por dois homens parados no corredor. Eles falavam em tom baixo, mas a acústica do local permitiria que a escrava ouvisse o teor da conversa.

O homem mais gordo e baixo é o Padre Alceu, um português pertencente à família real portuguesa que foi enviado ao Brasil depois de um escândalo constrangedor para a coroa. Já fazem cinco anos que desembarcou na América e se tornou o padre mais conhecido da cidade sendo procurado por todo tipo de pessoa. Já o homem mais alto e forte, é Duarte, escravo dos Delgado Leão, uma família que estava a beira da falência e contava com o casamento da filha mais velha para melhorar a situação.

- A Igreja Católica fica muito feliz com o desejo de união vindo da parte deles. Mas, enquanto o noivo não tiver a certidão de batismo, não vale a pena marcar a data do casamento. - Explicava Padre Alceu.

- O batismo já foi feito, seu padre. - Rebateu Duarte.

- A cerimônia aconteceu, porém a documentação ainda não voltou do Vaticano.- Detalhou o padre para Duarte - Quem sabe não chega amanhã, junto com o Santo Ofício?

- Ótimo! Vou avisar o sinhozinho que amanhã a documentação chega e a data do casamento poderá ser marcada. - Concluiu Duarte.

- Não é bem assim. Não posso dar certeza que a documentação chegará amanhã. Além do mais, a situação da família Delgado Leão é conhecida por todos, não seria mais prudente procurarem uma capela que seja compatível com a situação da família? - Sugeriu o Padre Alceu.

Os dois homens estavam tão focados na conversa que também não notaram quando Joanne entrou na basílica e se juntou a Xica, no nártex do local. As duas não falaram nada, apenas se cumprimentaram com o olhar pois perceberam o clima tenso entre o padre e o escravo.

- Sinhô Padre, você me desculpe, mas acho que o sinhô não está querendo que eles se casem aqui! - Provocou Duarte, que nunca gostou do Padre Alceu e agora estava se enfurecendo - Mas já que não tem jeito, vou levar a sua resposta para o sinhozinho!

Irritado com as palavras do Padre Alceu, Duarte deu as costas para o homem e caminhou em direção a saída. O padre, antes que o escravo chegasse ao nártex, tentou pedir:

- Espera Duarte! Não vai falar pra ele que eu...

O musculoso corpo de Duarte continuou sua caminhada, sem sequer olhar para trás, porém ao passar pelo nártex, percebeu a presença das duas mulheres. Xica olhava de forma assustada enquanto Joanne olhava de forma sedutora para o escravo.

- Olá, Braços Fortes! - Disse Joanne em tom de flerte, mas recebendo uma bufada como resposta de Duarte que deixou a basílica enquanto resmungava coisas inaudíveis. Ao mesmo tempo, o Padre Alceu tomou conhecimento da presença das duas mulheres e se aproximou:

- Não, não! As duas aqui dentro, não!

- Eu só vim entregar os sapatos - Disse Xica apontando o pacote em suas mãos.

- E eu vim porque você me chamou! - Explicou Joanne.

O Padre Alceu ficou um pouco desconcertado, mas colocou as mãos em seu bolso até achar um saco de moedas. Ele estendeu a mão para pegar o pacote que estava com Xica, ao mesmo tempo que lhe entregava com a outra, o dinheiro.

- Tá aqui o pagamento! - Disse o padre ao abrir o pacote e conferir o resultado do trabalho do sapateiro enquanto Xica se dirigia à saída da basílica - Não, não! Pelos fundos! Não quero que vejam vocês duas aqui!

Sem alternativa, Xica caminhou até a saída dos fundos enquanto Padre Alceu levou Joanne para conversar em um local mais reservado. Sua amiga não tinha lhe revelado o que ia tratar com o padre, mas Xica ficou curiosa, portanto, esperaria por Janne fora da basílica.

Dentro da mente de Xica, as borbulhas de lava explodem violentamente, assustando, até mesmo ela, que tinha plena consciência de que tudo ali era fruto de sua imaginação. Enzo estava observando fixamente Xica desde a hora que ela havia adentrado a basílica. O rapaz pensava em Xica usando o pronome masculino, mas logo se corrigiu pensando que desde que a conheceu só a chamou pelo pronome feminino. Então não faria sentido chamá-la de outra forma.

Depois dessa breve reflexão, Enzo passou a pensar em tudo que Xica passou desde o sequestro sofrido em sua terra natal até a perseguição de Matias em terras brasileiras. O rapaz sentiu que precisava falar alguma coisa, mas novamente a sensação de que tudo que um homem branco e cis-genêro poderia falar, soaria errado. Ainda mais ele.

De alguma forma, sentia que o certo era se levantar para ir até Xica dizer alguma coisa.. Se levantou e caminhou em direção a escrava, mas uma sensação forte atravessou o corpo de Enzo lhe fazendo tomar um susto. Em seguida, como uma anestesia invadindo seu corpo sentiu uma alegria que somente um coração apaixonado conhece. Lembrou de Valencina.

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