CAPÍTULO 6 - A CABANA NA FAZENDA DO DR. BENÊ

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O Dr. Benê herdou a fazenda de seu pai, Bartô, um bandeirante cruel e violento que participou da colonização do Nordeste Brasileiro. Começou sua jornada, no porto de Restelo, em Lisboa, embarcando clandestinamente, em uma das nove naus que navegariam por 44 dias em direção ao que acreditavam ser a de Calicute, na Índia. No meio da viagem, Bartô foi descoberto pelo capitão que ordenou que fosse jogado ao mar e deixado para trás. Mas Bartô resistiu, enfrentando os tripulantes bravamente. A façanha acabou despertando a simpatia do capitão que permitiu Bartô seguir viagem com eles.

Com a chegada em terras que não pertenciam à Índia, os planos da coroa mudaram, portanto era necessário que homens se candidatassem para se fixar ali e trabalhar no processo de colonização da terra que eles chamaram, inicialmente, de Ilha de Vera Cruz. Bartô não hesitou em se pôr à disposição da coroa pois sabia que alguns criminosos poderiam escolher entre cumprirem pena, na prisão, ou seriam enviados ao território recém descoberto. Foi o que aconteceu. Graças ao capitão do navio que falou, diretamente, com Pedro Álvares Cabral, que conversou, por carta, com o Rei D. Manuel I em benefício de Bartô, que foi condenando a viver na colônia para cumprir sua pena.

Os anos foram se passando e além de cumprir sua missão ao se casar com uma índigena, Bartô ainda organizou bandeiras em busca de ouro na região que hoje chamamos de Minas Gerais. E foi através disso que construiu uma fortuna enorme e comprou uma extensa fazenda, onde se dedicou ao plantio de cana-de-açúcar. Largou o ofício de bandeirante para supervisionar o trabalho dos escravos, recém chegados da África, que se instalavam em sua fazenda.

Não tinha nenhum tipo de compaixão. Mandava seus escravos para serem castigados por qualquer coisa. Quando algum deles morria durante o castigo, sentia um enorme prazer. Sua crueldade não se limitava apenas aos negros, mas também a sua família. A bela índigena com quem se casou possuía diversas cicatrizes pelo corpo, em decorrência das violências de Bartô que sistematicamente a agredia na frente de Benê, seu filho.

O garoto cresceu sendo vítima da crueldade de seu pai que lhe infligiu castigos semelhantes aos dos escravos como deixar a criança ajoelhada em espinhos ou amarrada em sua cama para que não pudesse sair. Foi por isso, que Benê convenceu o pai a envia-lo a Portugal para estudar Medicina.  Estava no terceiro ano do curso, quando Benê recebeu a notícia que uma rebelião de escravos culminou na execução de seu pai.

Com a morte de Bartô, Benê terminou os estudos e voltou ao Brasil. Para assumir os cuidados com a Fazenda. Porém, seu tempo na Europa e os traumas de sua infância, o fizeram mudar um pouco as coisas como eram. Com tendências abolicionistas, foi abrindo sua fazenda para se tornar uma espécie de ponto de encontro de escravos, onde eram livres para praticarem sua religião, mas não conseguiu libertá-los, nem os remunerar, pois os compradores de açúcar ao saber que a fazenda funcionaria assim, ameaçaram cortar os laços comerciais com ela. Foi nesse período que sua esposa, uma negra, foi executada misteriosamente, o que foi considerado um recado da coroa sobre suas intenções abolicionistas.

Naquela noite do dia 07 de Junho de 1591, a lua iluminava o caminho de Xica que passava entre o canavial para chegar a um grande descampado onde uma cabana improvisada havia sido construída. Em seu entorno, sob o som de atabaques e ganzás, negros e indígenas escravizados dançavam freneticamente ao acompanhar o ritmo dos instrumentos. Alguns corpos caucasianos também tentavam imitar seus movimentos, em vão. Xica passa pelas pessoas, que se movimentavam de forma lancinante, e responde aos cumprimentos, antes de entrar na cabana.

- Finalmente você chegou! - Exclamou Joane ao ver Xica entrando. A mulher negra usava um turbante semelhante ao de Xica, mas em cores diferentes, e terminava de enrolar um cigarro. Xica colocou suas coisas em um canto e observou que, na mesa, já estava uma garrafa de aguardente além de alguns cigarros enrolados. Observou também uma cama tão improvisada quanto a cabana em que estava.

- Desculpa! Eu vim pelo canavial e acabei me perdendo. - Explicou Xica enquanto pegava um pouco de fumo e também começava a enrolar um cigarro.

- Eles já devem estar... - disse Joanne antes de ouvir o som que vinha de fora e ficou mais forte - Aí! Tão chegando!

As duas negras olharam em direção ao pano, que servia de porta para a cabana, mas não chegava até o chão. Então, assim que a luz do fogo apareceu, por debaixo do pano, as duas sabiam que Dr. Benê estava prestes a entrar. O pano foi afastado por um braço negro enquanto quatro homens passaram pela passagem carregando uma maca. Em cima dela, uma doce criança branca, de cabelos crespos, se contorcia em decorrência da febre.

Quando os homens colocaram a maca no chão, um deles carregou a criança e a colocou na cama. Nesse momento, Xica e Joanne perceberam, através da incidência de um feixe de luz lunar pela escura cabana, que se tratava do próprio Dr. Benê.

- Benê! Já está tudo pronto! - Avisou Joanne ao colocar as mãos nos ombros do homem. Enquanto isso, a criança se sentava e observava Xica se concentrando para o que iam fazer em seguida. Mas a menina, que se chamava, Leonor, não hesitou em chamá-la:

- Xica!

- Ela está ocupada, depois vocês conversam, Leo! - Repreendeu o pai.

Como se tivesse um acordo entre todos, a voz de cada um deles sumiu e, somente o som da música, lá fora, invadia o espaço. Joanne começou a entoar um canto que, pouco a pouco, foi seguida pelas vozes dos outros  presentes até que, fora da cabana, todos também acompanharam também. O corpo de Xica começa a se movimentar freneticamente, como se tivesse espasmos, ao passo que o canto se tornava mais forte, as pessoas dançavam mais rápido. Xica dava voltas na cama onde a filha de Dr. Benê estava observando tudo. Quando o corpo de Xica desfalece, caindo ao chão, a criança pensa se a queda machucou a mulher.

Com certa agilidade, Xica se levanta e assume uma postura impotente, diferente da que geralmente tem. Leonor nota essa mudança, e dessa vez, se assusta por não reconhecer Xica. Joane suspende seu canto, sendo imitada pelos outros que estavam na cabana, mas lá fora, as pessoas não só continuaram cantando, como dançavam e tocavam música.

- Latasha, é você? - Perguntou Joanne, um tanto receosa e olhando na direção de Xica.

Ela não obteve resposta verbal, mas percebeu que Latasha já estava entre eles ao ver Xica se dirigir até a mesa para observar os cigarros de palha enrolados, antes de falar:

- Latasha não gosta de cigarros finos - Pega um cigarro e joga longe - Latasha tem sede! Se me derem o que preciso, lhes dou o que precisam!

No mesmo instante, Dr Benê começou a enrolar cigarros mais grossos enquanto Joanne abria a aguardente. O corpo de Xica sentiu o cheiro de aguardente e se aproximou da mesa onde o copo aguardava para ser preenchido com o álcool.

- Primeiro, resolva nossa aflição! A menina está de cama há uma semana! - Negociou Joanne.

O corpo de Xica se aproximou da cama, onde Francisca estava deitada, estendeu seus braços e antes de fechar seus olhos disse:

- Não tenha medo querida, apenas vou examiná-la!

Leonor também fechou seus olhos, mas não os apertou como se temesse o que fosse acontecer, e sim, com serenidade e delicadeza, enquanto isso, Xica estendia os braços por cima dela em movimentos circulares. A febre fazia Leonor suar friamente, mas depois de algumas gotas de suor escorrerem pel sua testa, Xica interrompeu seus movimentos e se dirigiu a Joanne:

- Prepare um chá do armário de remédios. Faça 4 doses por dia. Por uma semana.

Enquanto Dr Benê agradecia Latasha lhe entregando a dose de aguardente, Joanne procurava em suas coisas, as flores de Sabugueiro, chamada de "armários de remédios". O corpo de Xica pega um cigarro de palha na mesa e vira a dose que recebeu do doutor. Em seguida, se dirige até a entrada da cabana, afasta o pano, revelando uma multidão que ao vê-la, soltam gritos de comemoração.

Do meio da multidão, surge Ghali, o escravo de um padre, que carregava uma tocha nas mãos. Ele se aproxima da cabana depois de empurrar outros homens. Ela aproximou o cigarro da tocha do homem enquanto olhava sedutoramente para ele. Ghali desviou o olhar. Sabia que aquele não era o olhar da verdadeira Xica, mas sim de Latasha. O cigarro foi aceso e dois tragos foram dados antes da noite se tornar mais escura e as chamas serem apagadas subitamente. Xica desmaiou.

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