Depois do susto provocado pelo tiro disparado durante a madrugada, na manhã seguinte, Clara acordou bem cedo para preparar o café da manhã da tropa. Enquanto escoava a quinta porção de café preto, a professora observou pela janela uma movimentação que lhe despertou a atenção. Diferente do dia anterior, teve a impressão de que a maior parte dos homens já estão de pé e andavam de uma lado para o outro, carregando caixas, desmontando tendas e conferindo os armamentos. A situação lhe tornou mais estranha, quando se lembrou que quando acordou, as altas patentes já se reuniam em um salão de portas fechadas.
- Será que a tropa getulista está por perto? - Pensou a professora, em voz alta.
- Falando sozinha? - Perguntou Valente ao entrar na cozinha, carregando uma bolsa com seus objetos pessoais.
- Eu estava... - Começou explicar, a professora, mas ao se virar e perceber o que o irmão carregava, desistiu de falar e emendou um questionamento - Que bolsa é essa?
- Eu vim pegar meu uniforme. - Respondeu Valente, tentando evitar responder ao questionamento feito por Clara.
- Está ali. - Disse Clara apontando na direção de um móvel da cozinha ao mesmo tempo que impede que o irmão chegasse lá. O tom de sua voz se tornou ligeiramente histérico. - Que bolsa é essa?
- Clara, depois da confusão de última noite, o Tenente concluiu que a Fazenda está localizada em um ponto que nos deixa vulnerável. Então vamos nos juntar ao restante da coluna, em Espírito Santo do Pinhal. - Explicou Valente deixando Clara sem reação por alguns segundos - Clara...?
- Eu vou com vocês! - Falou a professora como se tivesse concluindo algo que já deveria saber há muito tempo.
- De jeito nenhum! - Esbravejou Valente - Você já ajudou bastante enquanto estivemos por aqui! Além do mais, trincheira não é coisa de mulher.
- Escuta: Desde que vocês chegaram, me sinto fazendo parte de algo importante. Algo capaz de ficar marcado na história. Mesmo que seja lavar roupas e cozinhar, apenas. - Disse Clara ao segurar a mão do irmão - Você deve entender o sentimento de lutar por um ideal. Não foi por isso que você saiu escondido, para se juntar a eles, e não voltou mais?
- Agora, vai começar a me criticar? - Perguntou Valente, preso somente na ideia da irmã de se juntar à tropa e ignorando o restante do que ela falou - Você não vai e ponto final.
As palavras de Valente foram extremamente firmes e duras. Clara desistiu de tentar convencê-lo e sem se despedir, Valente deixou a cozinha tão furioso que se esqueceu de pegar seu uniforme. Clara se aproximou do móvel e observou a pequena pilha de roupa. Em sua mente, no salão do trono, ela debochava da frase dita por seu irmão:
- "Trincheira não é coisa de mulher"...E é lugar de homem, por quê? Tanto homem covarde por aí....Não que não possam ser covardes, mas assim como os covardes existem, nós, corajosas e valentes também existimos.
- Olha tem uma frase que eu sempre escutei, mas não entendia - Lembrava Enzo, um tanto constrangido - Que inclusive eu debochava bastante, por não entender, como vocês se sentem quando são impedidas de fazer alguma coisa.
- Tá já entendi que você se sente mal. - Disse Clara sem se levantar de seu trono. - Mas qual é a frase?
- "Lugar de mulher é onde ela quiser". - Disse Enzo.
- O que você quer dizer com isso? - Perguntou Clara se levantando do trono.
- Você pode concluir sozinha, ou eu te explico se me soltar. - Tentou negociar Enzo, mais uma vez em vão.
- Pois eu prefiro ficar sem saber. - Disse Clara voltando a se sentar no trono e refletindo sobre o que ouviu de Enzo por um tempo. - Esse covarde deve estar aprontando alguma coisa!
O fato de Clara não permitir que Enzo observe, através da câmera, o que acontece fora de sua mente, fez com com o rapaz pensasse que a professora estivesse o chamando de covarde. Entretanto, fora de sua mente, Clara testemunhava uma cena que lhe causava extrema indignação.
Observava, pela janela, a movimentação da tropa paulista e Clara não demorou muito para ver um ônibus se aproximando da entrada da fazenda onde diversos soldados o aguardavam. As portas do transporte se abriram e os homens entraram e ocuparam seus lugares rumo a Espírito Santo do Pinhal. Clara reparou que aquele soldado, responsável por cuidar do portão principal, agia de forma estranha mais uma vez.
Ele não estava dormindo sentado, mas andava de um lado pro outro quebrando o ritmo para cumprimentar os colegas que passavam por ele em direção ao ônibus. Entretanto a visão de Clara estava limitada ali da janela da cozinha e por isso foi até o mirante em miniatura. Lá, como uma águia faminta observaria uma cobra, Clara percebia que o soldado parecia mais ansioso do que nunca.
- O último ônibus acabou de passar. Agora, somente viagens de caminhão, pela noite! - Gritou um dos soldados que passava perto do mirante. Clara, se assustou, mas não deu muita atenção, estava certa que o soldado do portão estava aprontando alguma coisa.
Quando o último soldado embarcou no ônibus, o soldado observado por Clara se jogou em sua cadeira como se estivesse aliviado. Assim que o coletivo deixou a fazenda, o solado do portão olhou em seu entorno, constatando que estava, enfim, só. Ele correu em direção à alguns arbustos e ficou ali por alguns segundos.
Clara não conseguia ver o que ele fazia atrás do arbusto, mas a cada movimento do homem ela sabia que estava certa ao desconfiar dele. Quando ele reapareceu, a professora percebeu que ele não carregava mais seu fuzil.
- Seu covarde, não vai fazer isso, não! - Falou Clara enquanto descia do mirante e corria em direção ao portão. - Volte aqui, rapaz!
Entretanto, por mais rápido que Clara pudesse ser, não teve tempo hábil para alcançar o homem. Quando percebeu que Clara chamava por ele, simplesmente atravessou o portão e correu na direção contrária ao que o ônibus havia tomado.
- Covarde! - Gritou Clara enquanto recuperava o fôlego e via o rapaz cada vez mais distante da fazenda e muito mais de Espirito Santo do Pinhal. Ela decidiu descansar um pouco, na cadeira do soldado, antes de voltar para a casa principal, mas uma ideia surgiu na sua cabeça. - E se...?
A professora endireitou seu corpo na cadeira antes de girá-lo em direção ao arbusto que, mais cedo, o soldado havia entrado. Embora tivesse dúvidas sobre o que estava fazendo, Clara não hesitou em se levantar e ir até lá, em busca do fuzil do covarde soldado.
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Sete Erros
General FictionSete Erros é uma jornada pela história do Brasil que tem como pano de fundo diversos momentos: - Os dias que antecederam a visita do Santo Ofício - A criação da bandeira de Pernambuco no fim do Brasil Colonial - Um romance impossível às vésperas da...