CAPÍTULO 17 - AS ENTREGAS DE SAPATOS

6 1 0
                                    

Bateu algumas vezes na porta enquanto observava o movimento. Xica percebeu que, de fato, as pessoas, que passavam pela Rua do Cenóbio de São Bento, pareciam mais agitadas naquela véspera da chegada do Santo Ofício às terras brasileiras.

- Finalmente Xica! O sinhô já tava soltando fumaça pelo nariz! - Disse Ignatius, escravo pertencente a um advogado solitário - O pagamento tá aqui. Obrigado, Xica!

Ao entregar o saco de moedas, a mão de Ignatius tocou a de Xica por alguns segundos. O tempo foi suficiente para que o rapaz a olhasse sedutoramente os olhos negros da sapateira que sorriu discretamente antes de dizer:

- Disponha!

Depois que deixou a Rua do Cenóbio de São Bento, Xica se dirigiu para a região do Forte Santo Alberto, onde mais uma entrega seria realizada. Durante sua caminhada, em sua mente, percebeu que Enzo procurava alguma coisa pela cratera do vulcão.

- Tá tudo bem? Você está mais quieto do que ontem.- Disse Xica vendo o rapaz empurrar as pedras em busca de algo.

- Tá sim. - Respondeu secamente Enzo.

- Está procurando o quê? - Perguntou Xica, evitando insistir que Enzo está se comportando de forma diferente.

- Um jeito de ir embora. - Falou Enzo de forma mais seca que antes.

- Ah! Agora você está interessado em ir embora? - Disse Xica associando a mudança de comportamento do rapaz com a revelação sobre sua transexualidade.

- Eu sempre quis ir embora, mas eu já te disse que não tenho a mínima ideia de como fazer isso - Explicou Enzo.

- Depois que te contei quem eu sou, você mudou seu comportamento. - Apontou Xica deixando Enzo desconcertado.

- Não, não é isso! É que eu tenho muita coisa a resolver fora daqui! - Explicou Enzo - Além do mais, até ontem a noite, você queria que eu fosse embora.

- E continuo querendo, mas não posso deixar de pensar que ontem, você só me ajudou a me defender de Matias, por não saber o motivo dele fazer aquilo comigo. - Falou Xica.

- Eu faria aquilo por qualquer pessoa. - Justificou Enzo.

- Acredito, mas minha aflição é se você se arrependeu de ter feito aquilo? - Perguntou Xica.

Enzo não responde e apenas continua empurrando as pedras. Xica se aproxima da mesa de controles e se posiciona de forma que o rapaz não possa ver seu rosto pois sabia o que ia acontecer. Uma lágrima escorre de seu rosto ao mesmo tempo que, do outro lado da cratera, Enzo também percebe uma lágrima escorrer pela maçã de seu rosto enquanto empurra uma grande pedra. Mal teve tempo para refletir o motivo de estar com vontade de chorar, pois o sentimento se dividiu com outro que surgiu ali,  a animação ao ver o que estava atrás da pedra que ele empurrava.

Havia chegado ao seu destino, uma casa de três andares de onde se podia ver o mar, portanto, Xica parou alguns momentos para observar o mar. Não chorava, mas estava notavelmente triste e nem a beleza do mar podia mudar isso. Se aproximou da casa e mal deu algumas batidas na porta, uma jovem mais nova que Xica apareceu dizendo:

- Finalmente! Os ves... - Começou dizer a jovem, mas mudou sua expressão de alegria, para descontentamento - Ah, são os sapatos! Pensei que eram os vestidos!

A garota carregava um grande saco de moedas, mas deu meia volta e , dentro da casa, pegou um saco menor para entregar para Xica. A jovem apontou um canto onde Xica deveria deixar os sapatos e sem tocar na escrava, entregou o pequeno saco de moedas à ela. Xica pensou que a mulher estava com nojo dela, mas achou que era só coisa de sua cabeça. Entretanto, enquanto contava as moedas para conferir o pagamento, ouviu:

- Papai, venha buscar os sapatos! Não quero tocar neles depois que aquela nojento encostou neles!

Em sua mente, Enzo e Xica observavam uma espécie de caverna cumprida. Em suas paredes existem diversas cabeças de pano que funcionam como um suporte para vinte e três turbantes. Cada cabeça era identificada por uma numeração que ia de 1566 até 1591, mas Enzo estava tão decidido a sair dali que não compreendeu seu significado.

- Rapariga maldita! - Disse Xica.

- Quem? Eu? - Perguntou Enzo.

- Não, deixa para lá! Seja o que você estiver pensando que isso é, não  entre aí! - Alertou Xica.

- Isso deve levar a uma saída daqui - Disse Enzo, ignorando o alerta e entrando no corredor que cada vez ficava mais estreito. Ele atingiu a metade da caverna e um pedaço de madeira surge, da parede, na altura da canela do rapaz que acaba se desequilibrando e se segurando em um dos suportes. O turbante que estava ali em cima, se desenrolou até se soltar da cabeça, mas, por reflexo, Enzo a segurou para evitar que fosse ao chão.

- Enzo, não toque nos turbantes! - Gritou Xica ao mesmo tempo que Enzo se ajoelha, ainda segurando o turbante em uma mão e, com a outra, segurava sua cabeça como se estivesse com uma forte enxaqueca. 

Sete ErrosOnde histórias criam vida. Descubra agora