Os olhos negros de Xica se abriram enquanto ainda estava no chão. Logo ela conseguiu identificar os dois vultos que estavam à sua frente. Eram Joanne e Dr Benê, que estavam parados, cada um, em um dos lados dela. Nas mãos de Joanne havia um copo vazio e o dono da fazenda usava as mãos para abanar Xica. A escrava percebeu que era segurada por outro homem, um dos escravos, e notou que seu cabelo estava molhado, assim como a sua face.
- Eu não sei o que deu nela! Nunca aconteceu isso! - Explicava Joanne.
- Você está bem? - Perguntou Dr. Benê ao perceber que Xica despertava.
Ainda um pouco confusa, Xica concordou com a cabeça, mas negou quando Dr. Benê se ofereceu para examiná-la, assim como negou quando ele ofereceu seus homens para acompanhá-la até a cidade. Diante das negativas da mulher, o fazendeiro lhe entregou um saco cheio de moedas como pagamento pelo ritual, antes dela deixar a cabana.
Depois de uma hora de caminhada pela estrada que levava até Salvador, em sua mente, Xica observava Enzo entediado. Ele reclamava que essa parte do jogo, que consiste em andar até a cidade, era muito desinteressante. A lava da cratera borbulhava freneticamente enquanto Enzo tirou seu olho do astrolábio e falou:
- Essas borbulhas são mais interessantes que essa estrada. Não tem como você ir correndo? Ou pegar um atalho?
- Estou muito cansada para correr à toa! Até poderia pegar um atalho pelo canavial, se não tivesse me perdido mais cedo por lá. Imagina, agora, nessa escuridão? - Respondeu Xica balbuciando.
- Sabe que você falou sobre cansaço e eu também estou me sentindo assim? - Comentou Enzo enquanto também balbuciava - Você devia ter pedido ao Dr. Benê, pelo menos, um cavalo! - Sugeriu em tom de reclamação ao se encostar em uma parede - E se... E se roubarmos um cavalo?
- E ser perseguida por ter roubado? - Perguntou Xica sem olhar para Enzo para se concentrar nos controles da mesa, o que chamou a atenção de Enzo para lá e, segundos depois, falar:
- Talvez seja esse o meu objetivo dentro do jogo!
- Já te falei que isso não é um jogo, é minha vida! - disse Xica rispidamente.
- É exatamente o que um avatar seria programado para responder! - Concluiu Enzo.
A conversa estava enfurecendo Xica, mas antes que ela pudesse dar continuidade, seu sentimento mudou e se transformou em medo, fazendo seu corpo congelar. Enzo percebe a mudança em Xica, porém também se sentiu com medo. Sem entender de onde vinha aquilo, sentiu um arrepio, na espinha, que o fez olhar através do astrolábio.
Pelo instrumento, Enzo observou que Xica estava na Rua do Cenóbio do Carmo, quando avistou um homem vindo em sua direção. Ela reconheceu aquele vulto, mas respirou fundo e continuou caminhando. A lua ainda iluminava boa parte do caminho, mas o vulto passou por debaixo de uma árvore que lhe manteve nas sombras. A escrava apertou o passo e se aproximou do vulto que saiu da sombra da árvore. Sob a luz lunar, seu rosto é revelado confirmando que se tratava de uma figura conhecida por ela.
O comerciante de escravos e cristão fervoroso, Mathias Pereira, estava neurótico com a chegada do Santo Ofício. A missão seria enviada ao Brasil pela Companhia de Jesus. Deixou de ir ao porto para receber um navio negreiro, e com isso, perdeu suas oportunidades de negócios, pois se dedicaria a verificar se nenhum pecado estava sendo cometido em local público. Passou semanas encontrando o pecado até nas almas mais inocentes, as crianças. Chegou a fazer recomendações a alguns clientes que encontrava pela rua. Aconselhava-os a deixarem seus escravos trancados enquanto o Santo Ofício estivesse na cidade. Mas foi alvo de piadas, pois seus clientes questionavam quem faria os serviços externos da casa, senão os escravos. Em meio a sua cruzada soteropolitana, Mathias encontrou naquela madrugada, uma figura que já havia visto algumas vezes nas últimas semanas. Além de não seguir a palavra de Deus, parecia querer afrontá-lo. Mathias estava em seu limite de paciência, por isso ao cruzar com Xica na Rua do Cenóbio, não hesitou em segurá-la pelo braço, ameaçadoramente:
- Que parte você não entendeu que eu não quero ver você andando por aí com essas roupas!
- Não tô fazendo mal para ninguém. - Respondeu Xica, hesitante.
- Também peca quem deixa os pecadores pecarem - Responde Mathias ao mesmo tempo que erguia sua mão para acertar o rosto de Xica. A escrava se encolheu e fechou os olhos.
- É isso que Jesus faria comigo? - Desafiou Xica enquanto, em sua mente, estava encolhida no chão, completamente vulnerável. Estava a ponto de seus controles mudarem de cor, deixando de serem verdes para se transformarem na cor vermelha. Ao observar a mesa de controle se modificar, Enzo correu em sua direção animadamente.
- Finalmente alguma ação! - Comemorou enquanto apertava os controles e rapidamente compreendeu que os controles respondiam aos seus pensamentos. Portanto, bastava Enzo pensar em se soltar que Xica empurraria Mathias.
- Enzo! Pense bem no que você vai fazer! Apenas me tire daqui! - Suplicou Xica.
Enquanto pressionava seus dedos grossos contra o braço fino de Xica, Mathias aproximava mais seu rosto do dela. A mulher sentiu o cheiro forte da aguardente que vinha da boca do homem. Mas sob o comando de Enzo, Xica se solta dos dedos fortes, empurrando o homem para trás, lhe fazendo cair ao chão.
Em sua mente, na cratera do vulcão, Xica estava sentada no chão imóvel, dividida entre recuperar os controles para evitar o confronto com Mathias ou deixar que Enzo acertasse um golpe no homem.
- Legal! Você absorve a minha força física quando eu assumo os controles! Enzo comentou, entusiasmado.
Somente a lua e as estrelas testemunharam a queda de Mathias. Mas o homem não desistiu assim tão fácil, pois se levantou relativamente rápido para um alcoolizado. Ele caminha em direção a Xica como quem se armava para o combate em um campo de guerra. A oponente, não fez diferente, também parecia se preparar para a briga, mas em sua mente, um conflito também acontecia, onde os combatentes eram ideias divergentes.
- Enzo...- Começou Xica, pensando em pedir para o rapaz recuar, mas avaliando seu desejo de fazer com que Mathias lhe deixe em paz, por isso não retomou os controles que continuaram avermelhados. Simultaneamente, mesmo focado em controlá-la, Enzo percebeu o que ela queria dizer e respondeu:
- Ele merece um tapão de mão fechada na cara!
- Merece até mais! Só que se fizermos algo com ele, eu que serei punida e julgada - Concordou Xica que já havia se recuperado e estava de pé observando Enzo.
- Se ninguém der uma lição nele, ele vai continuar fazendo isso! - Replicou Enzo ao coçar seus cabelos loiros antes de ameaçar apertar os botões - Acabar com esse idiota deve ser o meu objetivo dentro do jogo!
Os dedos de Enzo não conseguiram alcançar os botões antes que eles voltassem a ficar esverdeados. Ele tentou algumas vezes até compreender que Xica havia retomado o controle de si.
- Não posso deixar você fazer isso comigo - Disse Xica, em tom de pedido de desculpas, ao ver Enzo encolher os ombros e se afastar da mesa de controles. Em seguida, o rapaz pega o astrolábio para observar o que acontecia fora dali.
Mathias cambaleava, mas estava cada vez mais próximo de chegar perto de sua oponente. Porém, antes que pudessem ter algum contato físico, Xica disparou, na direção oposta, deixando o homem para trás, Ainda cambaleando, mas sem condições de correr, Mathias apenas se limitou a gritar:
-Foge mesmo! Você não é homem! Muito menos mulher! É uma aberração infernal!
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Sete Erros
General FictionSete Erros é uma jornada pela história do Brasil que tem como pano de fundo diversos momentos: - Os dias que antecederam a visita do Santo Ofício - A criação da bandeira de Pernambuco no fim do Brasil Colonial - Um romance impossível às vésperas da...