Havia pensado em todo tipo de palavra-chave para colocar no buscador, mas não encontrou nenhuma informação sobre um combate, ocorrido em algum ponto da estrada, entre a capital e a região serrana do Rio de Janeiro. Frustrada, Valencina se levantou e foi até a cozinha, onde tomou um pouco de suco de laranja. Quando voltou para a sala de jantar, antes de voltar para sua pesquisa, conferiu o notebook de Ray que continuava a descriptografar as informações encontradas no laboratório Rupônei. Novamente se frustrou. Voltou para seu computador onde encarou a tela.
- Deixa eu pensar. Eu já descobri que a rodovia se chamava Estrada da Corte. Não há registros de conflitos ocorridos na noite anterior, nem na seguinte ao baile. Na noite do baile, as ocorrências registradas foram na região do cais Pharoux. Por outro lado, na semana seguinte, cerca de vinte denúncias de desaparecimento foram feitas. - Disse Valencina, em voz alta, tentando descobrir o que poderia ter acontecido. - Os jornais! O desaparecimento deve ter sido notícia, mesmo como o país fervilhando com a iminência da proclamação da República!
Os dedos de Valencina apertaram as teclas em questão de segundos e logo, ela estava acessando as edições de A Tribuna do mês de Novembro e Dezembro de 1889. Passou uma hora fazendo uma análise, que combinava a leitura dinâmica com o CTRL+F, até que encontrou a edição de 15 de Janeiro de 1990. Valencina conferiu o todo da reportagem antes de começar a lê-la:
- "Foram registrados, entre Novembro e Dezembro de 1889, cerca de 22 desaparecimentos...o delegado responsável pelos casos, não acredita que os casos tenham alguma conexão, visto que não se conheciam e nem apresentam o mesmo perfil...Uma testemunha, que prefere não se identificar, alega que no dia seguinte ao Baile da Ilha Fiscal, viu um homem gigante, maior que todos os homens que já viu, caminhando pela Estrada da Corte com as mãos ensanguentadas... A testemunha afirma que ouviu o homem loiro que o acompanhava o chamar de Pequeno Louco... Entretanto, desde esse dia, não houveram relatos de que esse homem tenha sido visto, nem que seja humano. Sua altura, segundo a testemunha, devia ser de três metros, fora isso parecia um ser humano comum, com barba desgrenhada e braços fortes. Além disso, carregava na mão um machado feito de pedra. Algumas pessoas estão se referindo a ele como Curupira, entretanto sua altura e os pés virados para frente desqualificam esse apelido e, portanto, o chamaremos de Pequeno Louco, como a testemunha ouviu o homem chamá-lo..."
Terminou de ler, e Valencina soltou seu corpo sobre a cadeira e observou o espaço vazio entre as fotografias de Dra. Macrona, mas não se concentrou muito nisso. Apenas apertou seus olhos e voltou a digitar no computador e, em alguns minutos, já estava em uma página sobre alguma figura mitológica brasileira que poderia se encaixar na descrição da matéria. Mas nada encontrou, tudo que aparecia eram fotos e explicações sobre mitos provenientes da cultura de outros países. Porém, aquela história não lhe parecia estranha. Fechou os olhos e tentou puxar na memória, do que se tratava. Até que uma luz se acendeu em sua mente e ela se lembrou de sua adolescência.
O ano era 2015 e Valencina havia acabado de completar dezessete anos, mas mal teve tempo de comemorar, pois Valencina estava atribulada com as tarefas da escola, o reforço para o vestibular e, por fim, a preparação para o carnaval. Aos quatorze anos foi escolhida como Rainha da Bateria da Escola de Samba Rosa da Quebrada e, agora, três anos depois, precisava comunicar a decisão mais difícil de sua vida, até aquele momento. Entrou na sala do presidente da escola de samba, o Wagnão, e o homem logo esboçou um sorriso, que naquela idade Valencina já sabia reconhecer o significado. Ele tentou abraçá-la, mas ela se movimentou de forma que sentou antes que ele conseguisse alcançá-la.
- O que eu posso fazer pela jóia da Rosa da Quebrada? - Perguntou Wagnão enquanto voltava para sua cadeira.
- Eu preciso te dá um papo que tava meio que evitando. - Explicou Valencina sem olhar para o homem.
- O que foi? Alguém fez alguma coisa com você? - Perguntou o homem - Se fizeram, eu vou mandar pendurar a cabeça...
- Calma. Ninguém fez nada comigo. Mas agora que você falou essas paradas, eu tô em choque que você pendure, é a minha cabeça. - Falou Valencina tentando aliviar o baque que o homem sentiria em instantes.
- Jamais. Nem se você virasse Rainha da Rosas de Ouro! - Respondeu Wagnão dando uma leve risada.
- Então, sabe que eu tô indo mó bem na escola. Tipo a diretora até descolou umas aulas pra eu me preparar pro vestibular. - Disse Valencina.
- É importante os estudos, mas se é isso que você tem pra falar, então não é assunto sério. - Concluiu o homem.- Quer dizer, é sério! Mas é motivo pra comemorar!
- É que assim, essa parada de aula preparatória vai tomar muito do meu tempo. - Explicou Valencina - E também, não sei se vou tá aqui, no ano que vem...
- E? - Perguntou o homem, sabendo a resposta, mas querendo ouvir da garota.
- Eu vou entregar minha coroa. - Disse Valencina enquanto escorria uma lágrima de seu rosto.
- Pela lágrima que tá escorrendo, imagino que você esteja sofrendo com essa decisão. A vida é assim, uma sequência de decisões. - Respondeu Wagnão de forma tranquila. - Mas não posso deixar de te perguntar o motivo, você poderia fazer o que quiser. Estudar dança, se tornar modelo fotográfica, influencer, qualquer coisa que soubessem reconhecer a sua beleza e gingado.
- Sabe aquele dia que eu saí na mão com aquela loirinha aguada que mora ali perto do salão da Neide? - Perguntou Valencina e recebendo um aceno de Wagnão, indicado que ele sabia - Ela falou que eu nunca vou passar da mulata do samba que só serve para entreter os outros. Isso ficou na minha cabeça e quando, minha professora de física me avisou que tenho uma facilidade, fora do comum, com a matéria, eu decidi ocupar um espaço que as pessoas nunca esperam que eu ocupe.
- Entendi. Admiro sua coragem de seguir o caminho mais difícil possível. Mas, antes de você ir, posso te mostrar uma coisa? - Disse Wagnão enquanto abria sua gaveta e mostrava documentos bem antigos - Isso são registros visuais de uma lenda que surgiu no final do Império do Brasil. Um ser que teria dizimado milhares de pessoas e que será o tema do samba enredo: Pequeno Louco!
- É, parece que vai ser interessante. - Disse Valencina meio sem entender o que Wagnão queria ao mostrar aquilo para ela, mas reparando no desenho de um gigante barbudo que carregava um machado feito de pedra.
- Se você busca uma chance de ocupar um lugar que não é comum, componha o samba enredo. Será a primeira Compositora a desfilar como Rainha de Bateria!
- Ah! Para! - Disse Valencina dando risada. - Você sabe que não vai dar certo entregar uma responsabilidade dessas para uma garota de dezessete anos que nunca escreveu nenhum poema.
- Ué, mas você não disse que tava bem na escola? - Perguntou Wagnão de forma cínica.
- Física é bem diferente de Português. Além do mais, ir bem em português não faz ninguém capaz de compor e sim, a criatividade, o talento. E tudo que você e muito sambista por aí tem. De qualquer forma, muito obrigada por esse tempo! - Respondeu Valencina antes de se levantar e deixar o escritório.
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Sete Erros
General FictionSete Erros é uma jornada pela história do Brasil que tem como pano de fundo diversos momentos: - Os dias que antecederam a visita do Santo Ofício - A criação da bandeira de Pernambuco no fim do Brasil Colonial - Um romance impossível às vésperas da...