A preparação do jantar promoveu a quebra do silêncio, pois Clara dividiu as tarefas entre os ajudantes, Enquanto eles se ocupavam de suas funções a professora preparava um bolo de fubá com goiabada, mas não revelou para quem era o bolo. Mas antes que os outros soldados aparecessem para buscar seus uniformes e o jantar, Clara reuniu os quatro ajudantes e disse:
- Eu penso que fui maldosa com vocês mais cedo. Mesmo vocês também foram maldosos comigo. Mesmo assim, resolvi fazer esse bolo como uma forma de deixarmos isso para trás, até porque cada função é importante dentro de uma revolução.
Não soube se foram suas palavras ou a aparência suculenta do bolo, mas os ajudantes sorriam para Clara e, antes mesmo do jantar, devoraram o bolo todo, indicando que fazia tempo que não comiam uma boa sobremesa.
Mais tarde, enquanto terminava de entregar os uniformes limpos, conforme os soldados terminavam suas refeições, Clara notou algo, pela janela, que lhe incomodou. O soldado responsável por trancar o portão da fazenda, o fazia com desleixo ao amarrar de qualquer jeito. Clara sabia que não estava certo, pois um pedaço do arame estava solto, diferente de como encontra o portão quando chega a fazenda bem cedo para dar aula.
Assim que o último soldado deixou a cozinha com a barriga cheia e uniformes limpos nas mãos, Clara deixou seus ajudantes limpando a cozinha e foi até o portão, que era vigiado por soldado incapaz de trancá-lo da forma correta.
- Com licença. Eu percebi que você fechou errado o portão.- Disse Clara ao se aproximar do homem, que parecia estar cochilando sentado em uma cadeira - Esse arame não fica solto.
- Que diferença faz? - Perguntou o homem tentando enrolar o arame de forma que não ficasse solto.
- Não sei, só sei que nunca entraram na fazenda se ele for amarrado assim. - Explicou a professora enquanto desamarrou o arame e fechava o portão da forma correta. - Pronto!
Quando a professora terminou, viu que o homem tinha voltado para a cadeira e já estava dormindo novamente. Clara não gastou muito tempo desprezando a atitude do homem, pois tinha tomado uma decisão que somente Enzo, dentro da mente dela, teria conhecimento.
- Eu mesma vou ficar vigiando o portão, durante a madrugada. - Disse Clara sentada no trono de sua mente , como se tivesse decidido atacar um reino. - Se esse idiota vai passar a noite toda dormindo ao invés de vigiar.
- Com todo respeito, mas se você ficar acordada a noite, como cozinhará amanhã? - Perguntou Enzo.
- Eu dou conta. Amanhã converso com o Tenente e aviso sobre a displicência desse soldado. - Disse Clara.
- Pelo visto, esse aí não deveria estar na tropa. - Comentou Enzo.
- Pior que é. Os soldados que me ajudaram na cozinha e com os uniformes trabalham direitinho. - Falou Clara - São meio cheios de opiniões, mas fazem tudo certo. Agora, esse aí, nem trancar o portão consegue.
Enquanto conversava com Enzo, em sua mente, fora dela, Clara caminhou até o mirante em miniatura e escalou sua pequena escada. Ao chegar no topo, se posicionou no mesmo lugar que, na noite anterior, havia desmaiado. Observou a paisagem que, em sua maior parte, era completamente escura, sendo impossível de identificar o que era árvore, chão ou céu. Entretanto, alguns focos de luzes, espalhados, indicavam algumas fazendas ali perto, de onde as pessoas temiam o desenrolar da revolução. Mesmo assim, Clara não tirou o olho do portão e nem do soldado dorminhoco. Seus olhos começaram a cair, mas ela se ajeitava e continuava sua vigia, mas não resistiu e adormeceu.
Um som forte atravessou a noite fazendo diversos soldados despertarem e saírem de suas barracas improvisadas da mesma forma que as maiores patentes. Clara também acordou assustada e ao ouvir os gritos dos soldados, mas não conseguindo distinguir o que falavam, concluiu que a fazenda estava sendo atacada. Então, cuidadosamente, a professora se levantou para tentar observar o que acontecia lá embaixo.
Talvez foi a sensação de acordar no susto ou o som do tiro disparado, que levou a maioria dos soldados a agirem como se estivessem sendo atacados, mesmo que ninguém tivesse visto sequer um fio de cabelo getulista por ali. Pelo mirante Clara via os homens correndo de um lado para o outro, tropeçando em armamentos que tinham sido colocados no chão por outros homens, ou então caindo em cima de cabanas e até mesmo fogueiras. Um verdadeiro caos se instalou rapidamente até que novamente outro tiro foi disparado fazendo todos os soldados se virarem. Observaram o autor do disparo no meio do acampamento e apontando a arma para o céu.
- Que palhaçada é essa? - Perguntou o Tenente Mário enquanto segurava um homem de meia idade pelo colarinho, ao passo que os outros soldados abaixaram suas armas - O som que ouviram foi disparado por esse homem, no intuito de nos afastar daqui! Segundo ele, somos vagabundos que vivem somente para trazer a desordem. Vou deixá-lo voltar para sua fazenda, para que amanhã parta com sua família para um local seguro. Mas se durante o combate que acontecerá em breve, nessa região, encontrá-lo novamente, não teremos compaixão!
O Tenente Mário soltou o homem que caiu ao chão, mas logo se levantou e fugiu pelo mato, desaparecendo na escuridão da noite. Enquanto isso, os outros não esperaram pela ordem do Tenente e, rapidamente, arrumaram a bagunça antes de voltarem a dormir.
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Sete Erros
General FictionSete Erros é uma jornada pela história do Brasil que tem como pano de fundo diversos momentos: - Os dias que antecederam a visita do Santo Ofício - A criação da bandeira de Pernambuco no fim do Brasil Colonial - Um romance impossível às vésperas da...