I - Entre as Sombras e Neblinas (1)

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"Não sou escritor, não escrevo livros.
Ponho no papel mundos que testemunho na minha imaginação"

Tarde da noite, o ar dessa época do ano renasce as neblinas que criam imagens fantasmagóricas diante às luzes dos postes. O silêncio noturno repousa nos moradores da Rua do Andarilho do bairro de Carvajia, que outrora fora uma região temida e evitada por quase duas décadas atrás e no presente é considerada área nobre da parte sul da cidade.

Um carro de modelo antigo do início dos anos sessenta, bem (e muito) conservado, circula pela rua devagar com seus faróis vermelhos. Após as luzes rubras desaparecerem, sua cor perolada o faz se camuflar na neblina ao parar frente da entrada do portão de ferro de uma grande casa, se aquietando juntamente com a calmaria da rua silenciosa. A porta do carona é a primeira a ser aberta, do veículo sai uma jovem mulher de olhar sereno, cabelos curtos de um azul escuro com uma franja caindo sobre seu olho direito, vestida de calça jeans, blusa sem estampa, toda de preto, desde o casaco de couro justo ao corpo até as botas de modelo tático. Em seguida surge o motorista, um homem alvo de cabelos grisalhos (apesar de aparentar ser mais novo), quase raspados, de barba bem feita, óculos redondos da cor dos faróis do carro, usando um terno nitidamente feito por medida em um tom sóbrio, acinzentado, destacando a gravata pálida como a neve.

Ela caminha até a frente do portão, pega um cigarro escuro de sua carteira metalizada, cheia de estampas e cores, e antes de pegar o isqueiro declina ao perceber o olhar de desaprovação de seu parceiro. Os dois ficam diante da entrada parados fitando-a entre as sombras e neblinas.

– É aqui mesmo? – A jovem quebra o silêncio.

– Admito que o Escritório errou algumas vezes, várias eu diria, mas a Central até hoje não nos enviou para algum lugar em vão, apesar das informações serem um tanto vagas ou até confusas. – Ele abre o portão que estava destrancado e prossegue. – Mas sempre existe um algo ou alguma coisa para onde nos enviam.

E dá o primeiro passo ao mesmo tempo em que os primeiros pingos da chuva começam a cair.

...

Dez e quarenta e sete da manhã de um sábado ensolarado. Finalmente a última caixa foi esvaziada, após a mudança para a nova (e grande) casa da família Darwin, no conjunto Vilarejo terceiro da Rua do Andarilho. Uma vida nova cheia de possibilidades de um futuro promissor para Charles, sua esposa Laura e seus três filhos, Breno, Scott e Mirian, e é claro para o quinto membro, Johnny, um labrador retriever marrom, ainda no alvorecer de sua vida adulta. O lar estava por completo, e com os últimos objetos em seus devidos lugares e ajustes feitos, tudo estava perfeito. Cidade nova, casa nova, uma vida nova e feliz.

Mas Johnny não estava feliz assim, talvez fosse pela mudança que tenha parecido brusca para ele, um lugar diferente com cheiros, rostos, sons, vozes diferentes... Talvez. Ou quem sabe é algo que lhe traz desconfiança e certo temor ao olhar para aquela linda casa (assustadora) e espaçosa para explorar, que o fazia preferir permanecer muitas vezes no quintal que dentro dela.

...

O portão range ao ser fechado em um irritante barulho fino e sonoro, algo que não aconteceu em nenhum momento ao ter sido aberto.

Carmen? – Perguntou sem nem se mover.

– É... Também notei. Foi como um aviso para quem está dentro saber que estamos aqui.

Continuam devagar, cautelosos com os passos que dão, sempre observando tudo em volta e quanto mais prosseguem passando pela trilha de pedras mais se sentem como invasores de um lugar que não deveriam estar.

Senhor Branco?

– Insisto novamente que pode me chamar de B, Carmen, era como meus parceiros me chamavam.

– Hum, ok. – Soou tímido, mas verdadeiro, e prosseguiu. – Notou como ultimamente a Central tem só nos solicitado a noite? Beeem dentro da noite?

"São em noites mais escuras que os monstros mordem e mastigam".

– O quê?

– Desculpe, era algo que meu pai me dizia. Creio que a Central tem nos confiado mais serviços de periculosidade mais elevada. Afinal... – E se vira para ela. – Não falhamos nenhuma vez. Quais as possibilidades? Ou melhor... – E volta para frente parando diante da casa. – Quais as probabilidades?

Pára por um instante e continua:

– Estranho...

– O que foi?

– Aqui parece estar bem mais frio.


...

A HORA ZEROOnde histórias criam vida. Descubra agora