X - Atravessando O Espelho (1)

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"Os relógios pararam em zeloso silêncio em respeito daqueles que não mais voltaram."


Uma jovem menina corre entre os restos de uma casa de grandes pedras azuladas cobertas de musgo. Seus cabelos longos e negros teimam em cair sobre seus olhos a cada três ou cinco passos o que a obriga a ajeitá-los para trás das orelhas. Apesar do vestido verde longo, que se tornou pesado devido à garoa, ela se movimenta com facilidade conseguindo subir e saltar sobre os escombros de um muro caído.

Ela para no alto do que deveria ser um portão que a tempos se encontra repousando em cima de pedras e de um velho tronco de árvore cortado. Seus olhos enegrecem destacando pontos vermelhos luminosos, suas narinas dilatam buscando captar algo no ar sereno da noite, mas são seus ouvidos que detectam a presença de alguém além do que já foi outrora um grande jardim da propriedade.

Um sorriso largo surge em seus lábios mostrando seus pequenos e alvos dentes e suas presas. Ela salta e corre rapidamente almejando alcançar seu alvo encontrado. O frenesi invade seu corpo, seu coração acelera devido a adrenalina, suas veias pulsam e ela sente o sangue correr entre elas.

Ao chegar ao cemitério das flores ela usa de cuidado para que os restos de galhos secos e plantas mortas não rasguem e sujem seu vestido que ela tanto gosta.

Agora já não corre, caminha com cautela mantendo todos seus sentidos apurados. Observa cada parte encoberta por sombras e restos de arbustos como também se mantém atenta a qualquer barulho e cheiros.

A jovem começa a vacilar e sua determinação inicial declina para a impaciência após não ser mais capaz de detectar ou encontrar rastros de seu alvo.

Ela pára, olha á sua volta, sente os ventos frios, ouve os sons noturnos e… Uma sombra paira sobre sua retaguarda. Ela se move rápido para a esquerda, uma mão grande e forte a segura pelo tornozelo e a ergue para o alto até seus rostos ficarem alinhados. Seus olhos voltam ao normal, um sorriso se abre em seus lábios e diz:

- Oi pai.

- Você baixou sua guarda.

- O senhor sumiu.

- Não. Eu ocultei meus rastros. E você só se confiou nos seus sentidos.

- Eu não sei caçar de outra forma, pai - Responde cruzando os braços e fazendo cara emburrada.

- Instintos, Karina. Tem que aprender a usar e controlar seus instintos. Se o tivesse feito saberia minha exata localização antes de adentrar no jardim - Com a outra mão ele a segura e caminha carregando-a no colo - Você herdou os atributos de sua mãe, minha filha. Infelizmente ela não está mais aqui para poder lhe ensinar tudo que é capaz de realizar, então teremos que treinar muito para que você aprenda a utilizar todas as suas capacidades.

- Sim senhor, pai.

Os dois retornam para o local onde antes já foi uma casa. Ele a coloca sentada em cima de uma grande viga que está tombada no chão e em seguida faz uma fogueira com restos de madeira próximos a eles. Depois de erguer uma tenta acima de sua filha se junta a ela se sentando ao seu lado. Ela observa o fogo e se vira para ele:

- Pai. Eu me pareço com ela?

- Sim. Dos seus cabelos negros até seus pés magros.

- Meus pés não são magros. Eles são finos, é diferente.

Ele sorri para ela enquanto mexe no fogo com um graveto. Ela se levanta e vai até uma bolsa com estampa de camuflagem e dela retira um saco escrito marshmallow. O abre e coloca dois deles em um graveto e volta a sentar no mesmo lugar. Olha para seu pai e fala:

- Vi isso num filme americano.

- Seu tio andou lhe mostrando essas bobagens enquanto estou fora, não é?

- Não são bobagens, são instrutivos.

- Claro que são - Responde sorrindo.

- Pai. Posso lhe perguntar uma coisa?

- Sim. O que quiser.

- Como conheceu a mamãe?

- Estava a trabalho junto com seu tio na época. Caminhávamos no final da tarde por uma praça que era próxima de uma ponte. Por alguma razão, destino talvez, eu resolvi ficar para esperar o sol se pôr. Ele seguiu e eu permaneci sentado em um dos bancos de madeira. Quando o sol começou a cair no horizonte eu vi sua mãe em pé, encostada em um dos postes da praça. A luz alaranjada refletia nela fazendo-a parecer uma escultura grega. Ela estava de costas para mim, mas sentiu que eu a observava fixamente, notei isso assim que percebi que ela estava sorrindo. Então me ergui e fui até ela.

Karina sorri e seus olhos parecem brilhar. Seu pai olha para ela e sente alegria em ver o encanto de sua filha. Ele passa a mão em seus cabelos e começa a fazer uma trança. Ela se aquieta comendo seu marshmallow por uns instantes até perguntar novamente:

- Pai. Onde foi que aconteceu? Foi aqui? Ou foi onde morávamos antes?

- Foi bem longe, filha. Do outro lado do Oceano. Em uma cidade pequena, uma província na verdade, chamada Carmem.

- Carmen - Repetiu - É um nome muito bonito.

- Sim. Um dia a levarei lá. E iremos exatamente ao mesmo local da praça onde vi sua mãe pela primeira vez.

- Promete?

- Sim, minha filha. Eu prometo.

Carmem abre os olhos, percebe que se encontra coberta de areia. Mantém-se imóvel até saber se os que a atacaram estão ainda presentes. Com um pouco de sorte tenham partido acreditando que ela não resistiu.

Longos minutos passaram até atrever se mexer. Seu corpo dói no primeiro movimento. Ela se ergue e fica abaixada com um dos joelhos apoiados na areia. Olha em volta e percebe que o impacto das bombas a removeu do lugar. Havia se enterrado mais fundo do se encontrava agora a pouco. Ela amplia seus sentidos, busca captar qualquer ser vivo nas proximidades utilizando primeiramente o olfato, seguido da audição e visão, por fim uma voz sussurra em sua mente.

“instintos…”

Ela se levanta devagar.

“Tem que aprender a usar e controlar seus instintos.”

Seus olhos retornam ao normal. Ela caminha com esforço no início, mas a cada passo se recupera. Olha para os céus e vê que a tempestade foi embora e algumas estrelas já se tornaram visíveis. Não há sinal de outra presença além da dela e apesar de não haver mais corpos consegue sentir o cheiro de sangue:

- Garota sortuda - Fala baixo para si - Sobreviveu por uma puta sorte.

Carmem segue pela trilha que veio. Sobe o declínio atenta a tudo a sua volta. No final da subida começa a se sentir melhor, menos dolorida e sem o cansaço de antes.

Pela temperatura sabe que logo irá amanhecer. Então acelera seus passos em direção à vila mais próxima, voltar para o acampamento não é uma opção segura, podem estar aguardando por ela no caminho. Sobreviver é sua melhor chance. Tentar não exaurir suas forças e usar de seus instintos.

“Instintos, Karina.”

A voz de Gohard perambula no interior de sua mente e isso lhe dá mais forças para prosseguir. São oitenta quilômetros até a vila e ela não pode parar para descansar, tem que seguir direto e evitar que descubram que está viva.

- Vai ser uma longa jornada - Fala para si mesma em voz alta - Mas tente desfrutar da paisagem - E ao surgir um meio sorriso no canto da boca ela começa a correr para o sul.

A HORA ZEROOnde histórias criam vida. Descubra agora