VI - O Senhor das Feras (5)

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Erick Banner acorda religiosamente as três da madrugada. Sua aparência revela nitidamente o desgaste físico de seu corpo que parece debilitado como de alguém em fase terminal. É possível contar suas costelas e ver inúmeros ferimentos espalhados por todo seu tronco, braços e coxas. Seu cabelo está em um corte moicano e nas laterais de sua cabeça há tatuagens antigas de símbolos desconhecidos para a maioria dos homens. Seu quarto é simples, muito limpo e arrumado, não possui qualquer eletrodoméstico, nem lâmpadas, é iluminado por um lampião em cima de uma estante de madeira branca e há um sofá cama devidamente forrado com lençóis alvos. Na parede há uma imensa pintura de vários círculos, um dentro do outro, com um olho vermelho no centro. Ele se ajoelha diante da pintura com os braços erguidos, as mãos com as palmas voltadas para cima de cabeça baixa e ora sussurrando de forma incompreensível. Após concluir ele põe os polegares na testa e diz:

– Vivo, mato e morro pelo meu grandioso Senhor. O Deus gracioso dos caídos e rejeitados, o Deus dos órfãos e soldados.

Se levanta, veste uma roupa peculiar de couro negro, coloca um capuz com apenas uma abertura para seu olho violeta esquerdo e para a boca (que possui a aparência de um bizarro sorriso), depois vai até a cômoda de madeira pintada de branco, abre a primeira gaveta e encara seu interior por um tempo. Dentro estão guardadas em ordem de tamanho várias facas com as lâminas impecavelmente limpas e reluzentes. Ele calça luvas de couro e sua mão esquerda segura firme uma faca de cabo de madeira escura talhada em forma de serpente. A lâmina possui doze centímetros e em suas bordas, na metade, próximo ao cabo, possui dentes longos e afiados.

Erick agora não existe. Em suas vestes e novo rosto o Ceifador Silencioso sai de seu quarto, passa pela sala de estar de um apartamento vazio e limpo, atravessa a porta de entrada indo para o corredor, caminha no escuro por um velho edifício passando pelos apartamentos abandonados com sua faca em punho deslizando nas paredes descascadas e manchadas. Ele caminha devagar, sem qualquer pressa, afinal aqui é o seu mundo, é seu domínio, uma terra de um único soberano.

A porta do porão está aberta, as escadas são iluminadas por uma cor amarelada, sons abafados ecoam do fundo, da parte mais escura. O cheiro forte de mofo, madeira podre mesclam com os de um matadouro imundo, urina e fezes, contudo um odor mais intenso sobressai além dos demais, invade o ambiente como se fosse uma presença, o odor da morte.

O Carrasco Silencioso adentra nas trevas como se estivesse chegando a sua casa, com sua mão livre puxa a pequena cordinha que acende a fraca lâmpada, fixa no teto por um fio, que balança para um lado e para o outro criando imagens com as sombras dos vários objetos e móveis esquecidos no local. Na sua frente estão um homem e uma mulher amarrados com arame farpado, sentados no chão um de frente para o outro. Ambos parecem ser de origem latina, a mulher evita encarar seu torturador, seus gritos se limitam a abafados grunhidos e gemidos de desespero devido uma bola em sua boca presa por uma mordaça. O homem aparenta estar inconsciente ou morto, há sangue escorrendo do meio de suas pernas formando uma grande poça avermelhada. O Carrasco Silencioso se aproxima dele, segura seus cabelos, levanta a cabeça e olha para seu rosto que parece uma face de um boneco que nunca teve vida. Ele abre a mão deixando a cabeça tombar como uma peça quebrada e se inclina para baixo deixando seu rosto frente a frente ao da mulher e a encara de forma estranha, como um animal que move a cabeça quando se depara com algo desconhecido. Se posiciona de joelhos ficando de frente para ela, com a mão livre acaricia seu rosto e seus cabelos longos cacheados e negros, segura seu queixo para erguer sua cabeça e testemunha lágrimas de seus olhos grandes e castanhos, em seguida, em um movimento brusco, segura seus cabelos e puxa a inclinado para trás. Seu olho, que agora está na cor de pérola negra, encara a mulher que não emite mais qualquer som, apenas respira ofegante. Ele também não faz nenhum barulho, somente pensa como se estivesse conversando com ela.

‘Sente esse momento? A grandiosidade severa onde o ontem e o amanhã se encontram hoje? Agora? Nesse exato e único instante que jamais se repetirá' .

Ele solta seus cabelos e fica diante dela imitando sua posição como se fosse um reflexo no espelho. Ambos ainda não emitem qualquer som.

Ele aponta a faca para o homem.

‘Ele não aguentou. Seu coração foi forte, mas sua alma era fraca…'

Agora aponta a faca para sua própria cabeça.

‘... A mente era fraca… Desde o princípio. Mas em você vejo além de sua carne frágil a força que transcende as equações que limitam as nossas capacidades como meros humanos' .

Ele olha para cima, a lâmpada faz um leve zumbido e fraqueja piscando rapidamente como se fosse apagar. Seu olho negro volta para a face dela se fixando em seus olhos que não demonstram mais medo ou esperança.

‘Aqui é meu domínio, mas mesmo um mestre possui um mestre superior' .

Se aproxima mais do rosto dela.

‘Pois um mestre, soberano ou rei, todos… Todos são apenas humanos e neste mundo de órfãos somos todos filhos de velhos Deuses' .

A lâmpada começa a falhar mais e a luz vai enfraquecendo aos poucos deixando o porão ser engolido pelo escuro.

‘O mestre está vindo’ .

Mal dá para enxergar o porão agora.

‘O mestre está vindo’ .

O zumbido da lâmpada se intensifica, a luz se apaga e tudo se torna noite.

Da entrada da porta do porão surge um grito que invade os corredores desaparecendo no eco dos apartamentos vazios enquanto do lado de fora, pessoas e carros transitam alheias com o que acontece além das paredes daquele velho e sujo edifício abandonado.


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