IX - Todos Os Nossos Pecados (final)

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Alenora abre os olhos. Depara-se com um mundo cinza e sua mente teima em crer no que está diante de si. Ela se senta assustada, não lembra se havia adormecido ou não. Olha a sua volta e tem quase a certeza que estava acompanhada de alguém. Mas quem?

Com dificuldade se levanta, a atmosfera é pesada, o ar é difícil de chegar aos pulmões e ao tentar aspirar mais intensamente sente queimar suas narinas e garganta fazendo-a tossir e deixando um sabor amargo na boca. O lugar é imenso, cheio de sombras que formam paisagens gigantescas e assustadoras; é como se estivesse dentro de um pesadelo infantil.

'Será que já sonhei com isso? '

Ela caminha, seus passos ecoam como se estivesse em uma imensa catedral vazia. As paisagens reagem ao eco de seus passos.

'Será que estou sonhando? '

Calafrios percorrem sua espinha e se hospedam em seu estômago, ela olha para as palmas de suas mãos que estão suadas e gélidas. Instintivamente se posiciona na defensiva. Seus músculos se contraem, suas pernas se firmam, seu abdômen fica contraído e sua respiração controlada. Ela sabe que está em perigo.

'Como sei sobre tudo isso? '

O ar por trás dela se desloca. Seus olhos se tornam completamente pálidos e apesar de ter sido algo em frações de segundos ainda conseguiu ver que houve movimentação entre as sombras. Algo oculto, algo sujo, algo que anseia lhe fazer mal.

Seu coração acelera pela antecipação, a emoção invade seu corpo e a adrenalina lhe proporciona uma estranha sensação de prazer apesar do medo que tenta dominar sua vontade.

O ar se desloca uma segunda, uma terceira vez, sempre pela sua retaguarda. A cada movimento está tentando uma abordagem surpresa ou buscando encontrar uma brecha para ataca-la. E a cada ação dessa "criatura" mais o corpo dela se intensifica aguardando uma iniciativa ofensiva.

Uma quarta vez o ar se desloca, Alenora se vira rapidamente, algo surge a sua esquerda vindo de baixo para cima mirando sua jugular, ela se desvia com facilidade indo para trás. Ao posicionar seus pés no solo outro ataque surge originando de cima para baixo.

'Um ataque organizado.'

Algo afiado corta mechas de seus cabelos. Mais uma vez ela se esquiva tão rápido quanto no primeiro ataque. Seu corpo se mantém pleno e cheio de vigor, a sensação é que poderia fazer isso o resto do dia, contudo ela sabe que as tentativas de seu agressor se tornaram mais intensa.

Alenora sente movimentação a sua direita, se prepara e antes de ser atacada outro movimento surge a sua frente. Ela não previu que poderia ser mais de um, muito menos de uma abordagem planejada.

'Eles pensam ou será instinto predador?'

Suas mãos fecham em punho com força, seus ossos estralam, em seguida seus dedos se abrem como se segurassem um objeto pesado e ela sente um calor intenso emergir como se houvesse algo quente em suas palmas.

'Eu... Eu sei o quê é isso. '

Seus olhos se intensificam, luzes brancas surgem lhe permitindo enxergar além das sombras que encobrem sua visão. Não há som algum, mas ela sente a aproximação de seus agressores, sabe exatamente de que lado virão e como pretendem lhe atacar. Será um ataque direto, um pelo alto, pela sua retaguarda, o outro virá pela frente aproveitando enquanto ela se desvia do primeiro.

Ela aguarda e quando se inicia o esperado direciona suas mãos para aqueles que atacam. Um enorme clarão rompe o escuro deslocando o ar deixando-o mais limpo e o ambiente mais leve a sua volta. Os dois inimigos são arremessados violentamente a metros de distância. Ao baterem no solo pôde ouvir sons de algo quebrando.

Alenora está tranquila, seu olhar sereno não permite demonstrar qualquer sentimento. Ela caminha até um deles que aparenta estar inconsciente (ou morto), o observa tentando compreender o que pode ser, mas a "criatura" está envolta de sombras que parecem vestes enegrecidas e velhas. A luz de seus olhos se intensifica, tenta analisar o que pode ser o que tentou lhe matar, mas os sons de sinos quebram sua concentração e a atraem para eles. Ao caminhar mais depressa, seguindo o barulho, acaba chegando ao final de uma colina de onde é capaz de visualizar sua origem. Há quilômetros de distância ela enxerga uma igreja pintada de negro, do alto da torre do sino até às escadarias de sua entrada. Ela encara a construção como se sua existência fosse uma ofensa e a cada badalada que surge uma sensação ruim atinge seu coração.

'... Sete... Oito... '

O ar se desloca, não somente atrás de si, mas também abaixo da colina.

'... Nove... Dez... '

Os músculos de todo seu corpo se contraem. Suas mãos repetem os movimentos anteriores e o calor emerge novamente.

'... Onze... '

Ela visualiza vários deles indo à sua direção.

'... Doze... '

São silenciosos e estão famintos.

'... Doze badaladas... '

Famintos por desejos, famintos por vida, famintos por liberdade, famintos por carne e ossos.

'... Doze badaladas para a Hora Zero. '

Alenora aguarda o seu fim, sabe que são muitos para enfrentar, mas não irá se entregar sem luta, lutar é o estigma de sua família, lutar mesmo que não faça mais sentido.

Ela se prepara. Que comece a batalha.

Alenora.

A voz vem de longe atravessando as sombras que se movem.

Alenora.

É doce, hipnotizante e familiar.

Alenora, menina. Acorde.

Seus olhos retornam a normalidade. Suas mãos ainda permanecem rígidas como se fizessem força para segurar um objeto. Ela sente o calor emanar de suas palmas. Na sua frente está Charlotte segurando-a pelos ombros com um olhar mesclando preocupação e curiosidade:

- Menina, o que lhe aconteceu? Você ficou parada aqui na varanda olhando o mar por um longo tempo. Seus olhos e mãos brilhavam.

- Eu... Eu não sei. Desculpe, não sei... Eu estava em outro lugar, um lugar cinza.

- Céus. Eu já presenciei atitudes estranhas do senhor Branco, mas nada nessa magnitude.

Alenora encara Charlotte, seus olhos estão aflitos e sua voz falha um pouco ao se pronunciar:

- Não, não era um lugar, era um mundo cinza. Um mundo inteiramente cinza e esquecido.

- Criança. Você parece assustada, mas se lembre de que seus dons estão aflorando. E estão aflorando rapidamente, o que pode lhe causar estranhos acontecimentos. Seja onde pensou que estava não foi real, você não saiu do perímetro dessa casa.

Alenora se afasta e se senta em uma das cadeiras da varanda. Olha para as palmas de suas mãos que agora estão normais. Seus olhos fitam o horizonte que se encontra com o oceano, vê que a tempestade se foi para o alto mar. Ainda se pode ouvir os estrondos dos trovões e enxergar o brilho distante de alguns relâmpagos.

Ela olha novamente para Charlotte que a observa de forma serena:

- Mas e minha mente? Será que não foi ela que vagou para longe daqui? Disse que minha família possui um dom. Que dom é esse, Charlotte? O que foi que exatamente herdei?

- Ah querida. Queria poder ter todas as respostas para aquietar seu coração, mas em relação ao seu avô não sei se há alguém que saiba exatamente o que é esse dom. Ele não divide isso com ninguém, exceto...

- Exceto? - Seus olhos revelam um brilho de intensa curiosidade e anseio.

Charlotte se cala e permanece assim por alguns segundos antes de prosseguir:

- Querida, o que você sabe sobre a sua avó?

...

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