VII - Aquelas Velhas Canções (7)

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A lua ilumina aquele pequeno mundo azulado cercado de sombras ameaçadoras, Branco se encontra de joelhos, sem forças, ensanguentado e imóvel com os braços arriados, sua pistola está na sua frente a três metros de distância, a fumaça surgindo em cada pequena e rápida respiração demonstra o frio cortante dessa noite voraz. O som de passos ecoam ao seu redor, passos onipotentes de um vencedor diante do derrotado, passos lentos e calculados daquele que saboreia sua vitória sobre seu inimigo, sobre sua caça:

- Tenho que honrar sua presença meu caro, de todos que já enfrentei você foi o único que me trouxe essa magnífica sensação de combate. Foi difícil, admito, foi maravilhoso não saber quem de nós ficaria de pé enquanto o outro cairia de joelhos. - Ele se aproxima de Branco expondo sua máscara de trapos caracterizando um horrendo espantalho. - Você me proporcionou um grande presente, algo somente para mim, longe dos domínios de meu mestre e por essa razão eu lhe sou grato.

O Espantalho continua a caminhar a sua volta, de forma a aparecer ensaiada como se toda a macabra situação ocorresse em uma peça de teatro, um espetáculo em que a única plateia é a lua que testemunha a vítima esmorecer caindo lentamente nas profundezas do abismo.

Branco sabe que perdeu, suas forças se foram e seu corpo não possui qualquer capacidade para enfrentar seu algoz, aceitando enfim o inevitável ele começa a sussurrar palavras em algum idioma desconhecido. Intrigado o vitorioso se aproxima demonstrando que sua curiosidade foi maior que seu prazer diante de sua vítima moribunda. Seus pés pisam na enorme poça de sangue, se inclina se posicionando permitindo que ambos fiquem com suas faces na mesma altura:

- Conheço esse idioma, é a língua dos Antigos, meu mestre já as pronunciou. Como um humano pode ter a capacidade de pronunciá-las?

Branco aparenta não estar mais ciente da presença do Boneco Espantalho e se mantém firme em suas preces o que causa irritação em seu inimigo, irritação que rapidamente se transmuta em fúria beirando para o ódio desenfreado de um homem descontrolado de emoções:

- Pare! Você não pode ter essas palavras em sua boca, é proibido, é sagrado... Você... Você não tem o direito. - Grita em tom ameaçador gesticulando suas mãos com facas curvas em punho. E estando cego, preso dentro de sua indignação, baixou a guarda, o que o impediu de pressentir o que viria a seguir, as mãos fortes de um homem que ele acreditava estar morto, as mãos de Roman, que segurou firme seus braços e em um forte e rápido movimento os quebra violentamente expondo ossos e sangue que emergem juntamente com um grito de dor e surpresa que ecoa e desaparece com as sombras que estavam se movendo em torno deles.

Seu olhar é mais de indignação que de surpresa. É inaceitável perder assim para uma criatura primitiva e tão limitada como ele, um reles cão farejador sem qualquer elegância e inteligência para um duelo como havia sido com seu outro oponente. Ele grita, se ergue e avança mesmo não podendo utilizar seu braços e Roman o acerta nas costelas as partindo intencionalmente arremessando seu corpo a metros de distância como se fosse um manequim. Caído e sem condições de se levantar permanece imóvel ajoelhado no chão tossindo e expelindo sangue pela boca. Sua raiva é mais intensa que sua dor. Roman olha para seu parceiro que se mantém firme em suas preces, vai até ele e busca em seus bolsos seu telefone, após encontrá-lo disca mantendo seus olhos fixos no assassino que havia perseguido há tempos. Alguns toques depois uma voz masculina atende:

- Branco?

- Sou eu, Roman. Requisito transporte médico imediato, nível zero-um-alfa. Tivemos um embate com o suspeito que perseguíamos.

- Já encaminhei, em minutos chegarão no local. É tempo suficiente?

- Sim. - E desliga. Larga o telefone próximo de seu parceiro, põe a mãos em seu ombro. - Aguente firme, meu amigo. Você não morrerá hoje. Você não. - Em seguida caminha em direção ao Espantalho, no trajeto pega uma de suas facas que caíram após seus braços serem destruídos por seu ataque. Para diante dele e aperta firme seu pescoço arrancando com a outra mão, a que segura a faca, sua máscara revelando a face de um jovem sorridente de olhos de cor violeta. Roman o encara, sua fisionomia é fria e seu olhar revela o que estar por vir:

- Cometemos erros essa noite, meu parceiro e eu. Fomos descuidados, desatentos, fracos. Mas você... Esse monstro com imagem de garoto com face de inocência, com um sorriso que em outra situação enganaria o próprio diabo, cometeu atos que questionam a existência da humanidade. Não sei se há alguma forma de descrever o que é você, mas sei que jamais deveria ter nascido. - Ele põe a ponta da faça dentro de sua boca. - Você é a personificação de tudo que há de quebrado e podre em nós, garoto. - O jovem nada diz e se limita a manter seu sorriso singelo e seus olhos violeta firmes nos de Roman.

A faca brilha um risco no ar, som de carne sendo cortados, jatos de sangue flutuam, nenhum som é emitido dele enquanto seu corpo tomba no chão inanimado. Branco abre os olhos, encara toda essa imagem e apenas consegue ver duas feras que terminaram seu embate, ele sabe que a linha foi cruzada mais uma vez por seu parceiro, sabe que mesmo que estivesse em condições não poderia lhe impedir. Foi uma noite de crimes, sem justiça, sem humanidade, foi um ato de pura vingança, uma execução. Sua boca silencia e seu corpo tomba para trás. Seus olhos azuis fitam luzes acima dele, o som forte vem junto com jatos de vento e a última visão que tem antes de se perder na fria escuridão é da lua, a eterna testemunha de sua trajetória, aquela que sempre o manteve firme e são em situações que chegou a acreditar que não fosse suportar.

Seu olhos se fecham, seu corpo se perde e ele nada mais consegue sentir, se limita apenas aos sons, escuta vozes de homens que estão a resgatá-lo, ouve suas vozes distantes como em um sonho, ouve a voz de Roman gritando para ele, 'Aguente firme, parceiro', em seguida não escuta mais nada, nem vozes, nem o vento, apenas a quietude do silencio. Agora tudo o que existe são trevas e paz e isso parece ser algo reconfortante, a ideia de permanecer assim se torna tentadora, a vontade de apenas se deixar levar sem resistência para esse lugar se torna cada vez mais a ser o correto a fazer, a ser a única coisa certa a realizar. Branco se larga nesse mundo, deixa seu corpo flutuar nas calmarias desse rio suave e aconchegante e sem medo algum sorri sentindo seu coração quente e seu espírito livre com a certeza que cumpriu sua missão, que agora é a hora de se entregar aos braços da morte e ir de encontro ao seu Criador.

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A HORA ZEROOnde histórias criam vida. Descubra agora