X - Atravessando o Espelho (9)

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Todos os dias, antes do sol nascer, Jahir caminha pelas suas terras, um hábito iniciado por seu falecido avó e que teve continuidade por seu pai, que hoje não possui vigor para acompanhá-lo.

Sua família se encontra em casa, sua esposa, seu pai, seus cinco filhos e seu irmão mais novo recém-casado, que agora o ajuda nos negócios da família.

Do alto de um morro há uma árvore que ele costuma parar e se sentar para olhar sua morada.

Ao chegar ao local ele faz o mesmo que seu avô e seu pai faziam. Olha para as estrelas que estão para sumir pela chegada do alvorecer, agradece a Deus por suas bênçãos e pede que proteja e guie suas famílias em cada passo. Às vezes quando está sentado fala com seu avô como se estivesse ao seu lado, algo que ele evita que vejam, não por receio ou vergonha, mas por ser um momento que ele reservou somente para eles dois.

O sol começa a surgir, é hora de se levantar e começar a trabalhar. Jahir se ergue, sente que o estômago está pedindo comida e se lembra de que sua esposa lhe prometeu ontem lhe preparar algo que fez para ele quando estavam no início do matrimônio.

'O quê será?’

Foi o pensamento que decorreu desde que acordou.

Antes de descer olhou novamente á sua volta como de costume, mas hoje, sem uma razão específica, decidiu voltar indo pelo caminho mais íngreme. Aos primeiros passos sentiu uma dificuldade que não tinha quando mais novo, mas se recordou de ter presenciado essa mesma cena com seu avô e depois com seu pai. Logo começará a trazer seu filho mais velho para essas caminhadas, já está em tempo e é uma tradição da família que ele quer manter viva. A caminhada dos primogênitos foi assim que ele se acostumou a chamar, apesar de não ser um nome oficial para isso.

Na descida ele se depara com alguns abutres dando retirada. Acelera o passo, pode ser algum de seus animais que esteja ferido. Ao longe consegue visualizar algo caído no chão. Não é uma cabra, nem um de seus cães, é uma pessoa. Jahir vacila, para e pensa qual melhor atitude deve escolher, não pode ser mais imprudente como já foi em sua juventude, tem que pensar naqueles que dependem dele.

Ele olha novamente em volta para se certificar de que não há mais ninguém. O silêncio geralmente é um bom indício, mas por experiência sabe que também pode ser usado como armadilha. Ele põe a mão na cintura.

‘Droga. Não ando armado há anos. ’

Ainda assim, mesmo reluto, desce até a pessoa caída. Antes de chegar foi possível ver que é uma mulher de uniforme militar. Ele análise, não há nenhuma bandeira fixada em sua roupa, o que leva a certas possibilidades. Uma que pertence a alguma empresa privada, a segunda que pode ser de um grupo de mercenários. Olha novamente buscando algum emblema ou insígnia, mas ela estando de bruços não consegue enxergar.

Jahir se aproxima um pouco mais, com cautela e atento, não só com a mulher, mas com a sua volta.

Ao chegar até ela se abaixa. Tenta saber se ainda está viva, observa se há alguma respiração, mas não tem uma resposta positiva, então eleva sua mão até a carótida a fim de conferir se existe pulsação.

Ele sente a mão firme dela segurar seu pulso. É tão forte que ouve seus ossos estralando, o que o leva a soltar um som abafado de incômodo e surpresa.

A mulher levanta a cabeça devagar, seus cabelos negros são longos somente na parte superior e caem sobre seus olhos.

Ele tenta não fazer nenhum movimento brusco e fica com a outra mão com a palma aberta mostrando que não quer lhe fazer mal.

A voz da mulher, apesar de fraca, é firme:

- Seu nome.

Jahir reconhece o idioma, é o inglês britânico, mas há um leve sotaque que não consegue identificar.

Ele responde devagar e sem gaguejar tentando passar calma:

- Jahir. Pode me chamar de Jhair.

Ela o encara. Olha para os lados e depois o encara novamente:

- Onde estou?

- Nas terras de minha família. Somos produtores de queijo. Você está segura aqui. Não há soldados, nem ninguém que irá feri-la.

Ela tenta se erguer, mas ainda mantém sua mão segurando-o firme. Ao perceber sua dificuldade ele a ajuda até ambos ficarem de pé. Ao estar um de frente para o outro Jahir consegue ver um emblema em seu uniforme, uma letra K dentro de um V.

Ele sabe o quê é. Seus olhos fitam em volta com ar de preocupação.

- Não há mais ninguém - Fala a mulher soltando seu pulso - Estão mortos. Estão todos mortos.

Ela caminha se afastando dele. Olha o horizonte que já está sem estrelas. Ele se aproxima dela com calma segurando seu pulso que dói:

- Como se chama?

Ela responde sem desviar o olhar do horizonte:

- Carmem.

A HORA ZEROOnde histórias criam vida. Descubra agora